No fim de outubro, cheguei no espaço do coletivo Nossa Casa – Artes & Terapias, localizado em Guarulhos, para conferir o clima após a vitória da candidata Fernanda Curti à vereança da cidade. O local foi peça importante de organização e apoio para que uma liderança jovem, negra e LGBTQIAP+ adquirisse posse de uma cadeira em uma cidade marcada pelo reacionarismo. A cabeça idealizadora da Nossa Casa é a psicóloga, ativista social e agitadora cultural Camila Bittencourt, personalidade que atrai para sua iniciativa grandes potências guarulhenses em torno da busca por se construir uma cidade diferente da moldada pelo status quo.
A Nossa Casa Arte e Terapia é um coletivo independente em Guarulhos que atua em diversas áreas, como arte, cultura, saúde integrativa e direitos humanos, com foco em comunidades marginalizadas. Expandindo o raio de ação, o lugar passou a promover e empoderar candidatas mulheres do campo da esquerda como forma de disputar narrativas com o poderio das igrejas evangélicas. Ironicamente, Camila vem de um lar evangélico, ligado à direita e, hoje, ajuda nas bases de uma construção política de esquerda.
“A Nossa Casa completou seis anos de existência e seguimos sempre fiéis aos valores que fundaram a ideia. Entendo que coletivos como esse têm papel crucial na transformação da sociedade. Temos a necessidade de levantar essas bandeiras e construir esses caminhos, fazer construção política na prática, e a figura da Fernanda Curti representa isso pra gente. Acho que tudo que ela representa sendo mulher negra, periférica, lésbica na luta por direitos humanos há muito tempo. Então, pra gente foi uma honra e um prazer fazer parte dessa construção da campanha dela”, aponta Camila.
De fala sempre calma e tranquila, andar elegante e olhar atento, a psicóloga lidera sem histrionismos. Enquanto artistas independentes da música, artes plásticas, cênicas e escritores usam o espaço para expressar arte, ela observa, conversa e prende a atenção quando necessário sem precisar de esforço.
Com essa tranquilidade incisiva característica, Camila analisa com calma a vitória de Fernanda Curti. Quando conversamos, faltava uma semana para acontecer o segundo turno da eleição que acabou por eleger o candidato de extrema-direita, Lucas Sanches. “O cenário não é tão esperançoso. Acho que candidaturas como a da Fernanda, aqui em Guarulhos, representam um caminho, uma luz, mas temos de lembrar que o número de mulheres encolheu na Câmara. A coisa é complicada, e se ampliarmos para o cenário nacional, é ainda mais penoso. Seguimos na luta, e é uma luta que não é fácil, que é constante”.
“Eu sempre me lembro que dois anos atrás a gente estava vivendo uma era com o Bolsonaro, com a extrema-direita no Governo Federal e o quão difícil foi enfrentar perdas históricas em direitos, então lutar contra isso é uma parada sinistra, então o cenário não é simples e vai ter muita luta pela frente”
A posição política de Camila Bittencourt foi forjada e amadurecida nos anos em que trabalhou em instituições carcerárias, lugares que servem para moer almas e corpos negros. Após chegar ao limite físico e emocional do que poderia fazer nesse campo, ela decidiu fundar um lugar de acolhimento que abraçasse todos os recortes marginalizados possíveis.
“Fiquei 12 anos nesse rolê nos presídios. É um tempão, uma vivência, então tem muita história, muita coisa vivida e que é muito massa, aprendi muito, eu digo sempre que posso que a minha maior faculdade, a minha maior formação foi nesses espaços, não só nos presídios mas nas famílias dos presos. Ia em cada casa, em cada favela, em cada barraco, em cada quebrada e aprendi muito. Grande parte do que sou sai desse lugar e trago isso até hoje. Quando encerro esse ciclo, finalizo num lugar de missão cumprida”, conta Camila.
Aos 12 de idade, o rap nacional mandou uma mensagem direto ao coração e à mente da futura ativista. O hip-hop como transformação permanente fez morada na garota de olhos claros e pele marrom. A poesia de Mano Brown e toda a geração de rap dos anos 90 têm ligação direta com a movimentação que é feita na Nossa Casa Arte e Terapia nos anos 2020. Inclusive, como educadora em presídios, ela sentiu uma diferença quando o funk ostentação chegou para disputar a consciência dos jovens periféricos. “Muitas vezes, eu levava os Racionais ou Sabotage, Rappin Hood ou 509-E para eles ouvirem, mas eu já percebia naquela época 10 que a molecada não estava ouvindo tanto esse rap das antigas. Veio o funk trazendo outros valores, outras informações, sobre a questão da grana do acesso, do poder aquisitivo. Acho que esse é um ponto a se discutir, sabe?”
Manutenção e Sustentabilidade da Nossa Casa
A manutenção da Nossa Casa enfrenta desafios financeiros, pois a estrutura física e as atividades requerem recursos, e a maioria das ações é realizada de forma voluntária. A busca por parcerias e fomentos é essencial, mas a casa se recusa a abrir mão de seus valores e princípios, mantendo sua identidade e lutas. “Sim, eu sempre digo que a nossa casa não está à venda e nunca esteve. Alguns valores são inegociáveis para nós, então isso já limita alguns caminhos. Desde que a gente existe, algumas pessoas já estiveram lá, inclusive do poder público, no sentido de fazer parcerias, ocupar, estar ali, mas algumas coisas muito caras pra gente, algumas construções, alguns movimentos, algumas bandeiras não agradam e pedem para que a gente decline, e isso não fazemos. Então é tentar unir essas duas coisas ter grana, ter fomento, ter financiamento e continuar sendo quem se é”, reflete a psicóloga.
De fato, com a organização e beleza com que as coisas acontecem no coletivo, imaginar que há algum tipo de financiamento não é difícil, mas ao falar com os envolvidos, entende-se que organização é o fator chave. Sob coordenação de Camila, cada um entra com uma expertise, e assim formam o todo. “As pessoas falam ‘vocês são tão organizados, é tão bonito o que vocês fazem e tal’, e sempre fazemos de maneira voluntária, porque a gente acredita nas construções e nas lutas aqui pra essa cidade, mas é claro que a gente merece ser remunerada. Essa casa merece subsídios para poder fazer ainda mais do que faz. Se a gente faz tudo o que faz sem grana, imagine como seria com apoio?”
Camila conta, como exemplo, quando um possível investidor se interessou em apoiar o projeto, mas queria que o Coletivo abrisse mão de organizar a Marcha da Maconha de Guarulhos, evento sob as asas da Nossa Casa e que representa a pauta anti-proibicionista dos membros. Ela não aceitou e seguiu sem aporte financeiro. “Se você me apresenta argumentos que são plausíveis a gente vai conversar, mas geralmente está em um lugar de preconceito, de pouca informação, de hipocrisia, de racismo, enfim, lugares assim. E aí a gente não vai abrir mão dessa luta que é importante, que não é sobre fumar ou não maconha, porque isso as pessoas já fazem. É sobre você ter atendimento no SUS, é sobre acessar pessoas que estão pobres e não têm grana para pagar um tratamento de saúde”, reflete.
Sobre a necessidade de organização das esquerdas, assunto tão discutido nos últimos tempos, as façanhas da Nossa Casa provam que funciona. “A gente sempre faz questão de montar uma agenda linda, com parcerias incríveis, assim como a gente já fez com o Pretessências. Então, convido todes a prestigiarem. Muitas vezes a gente paga 300 reais, 400 reais, num show de artista grande, já um artista grandão não vai numa apresentação de artista independente, mesmo sendo da sua quebrada, sendo gratuita. Nossas atividades culturais são gratuitas. Então, coloca na agenda, compra um negócio na Economia Solidária, toma uma cerveja no bar, ouça os artistas, traz sua arte, seja presente, conte para outras pessoas que esses espaços existem e resistem”, conclui.