Não é a primeira vez que entrevisto o trio Tuyo. Como da última vez, Lio, Lay e Machado aparecem juntos na mesma tela, se espremendo sorridentes na sala como crianças que parecem se divertir constantemente quando estão juntas. O clima combina com a pauta do papo, o lançamento do álbum Quem Eu Quero Ser, coleção de canções voltadas ao público infantil escritas sob o viés sensível característico das composições do grupo.
Embora anunciado como de proposta infantil, os retratos musicais pintados pela Tuyo cabem perfeitamente num processo de reflexão das passagens cotidianas que os adultos tiveram na infância.
“Nós estávamos terminando de mixar o Paisagem quando nossa empresária nos avisou que estavam nos procurando para elaborar um disco infantil. A gente riu, né? Mas depois vimos que era sério. O que aconteceu foi o que acontece sempre com a gente. Quando uma ideia nova surge, é difícil largar. Mas não foi a primeira vez que surgiu algo assim. Tínhamos sido convidados antes para um projeto de canções de ninar, pela mesma gravadora ( Platoon UK), justamente porque nossa obra já flerta com um universo lúdico”, conta Lio.
Os três abraçaram o projeto como forma também de expandir o trabalho laboratorial e de independência da Tuyo. Reconhecidos por público e crítica, já indicados ao Grammy, compor Quem Eu Quero Ser traz as já reconhecidas camadas sonoras de Machado e as vocalizações de Lio e Lay para um universo de meiguice das crianças. “Pensar em como o público vai receber o show, como o mercado vai encarar, ainda mais com o último álbum sendo tão recente, essas questões mercadológicas, não são nosso assunto predileto. Então, encarar entrar em estúdio novamente para fazer esse disco foi uma forma de manter essas convicções entre a gente, de não navegar também pelo óbvio”, reflete Lay.
“Num ano de terceiro disco, é óbvio que a gente sentiu a pressão. Pra Curar foi extremamente bem recebido, Chegamos Sozinhos em Casa também, então Paisagem tinha uma expectativa, uma pressão. Aceitar o convite de gravar para o público que a gente nunca trabalhou aliviou um pouco a pressão. Foi tão gostoso – Tuyo
O disco funciona, à definição do trio, como uma antologia sobre a infância. Cada faixa é um estudo sobre a filosofia terna das crianças, com suas ingenuidades e questionamentos nem sempre tão infantis. “Para nós, a maneira mais franca e segura de conversar sobre infância num disco seria fazer dele uma homenagem à nossa própria, na honestidade de sempre”, afirma Machado.
O projeto reuniu nomes com quem a banda já estabelecia um carinho, como a produtora e diretora musical Érica Silva (guitarrista da Mulamba) – que dirigiu os estudos na montagem do espetáculo para a turnê do recém-lançado disco Paisagem, o engenheiro de mixagem João Milliet e o engenheiro de masterização Felipe Tichauer, parceiros de longa data da banda.
“Fomos crianças que ouvimos Dream Theater, Tears For Fears, Milton Nascimento, Bjork, e muita abertura de anime, e isso ajuda a revelar um elo entre crianças e os pais, flertando com os gostos da família inteira. Nosso show é “family friendly”, mas tem um fator de muita profundidade. Talvez esse disco tenha se movimentado entre esses dois mundos” – Lio
“Dógui” nomeia a canção-foco de Quem Eu Quero Ser, e se desdobra em um videoclipe que retrata o contato intenso do grupo com Roberto, o cachorro da vizinha. “A gente ensaiando como se fosse da banda, ele chegava, ficava olhando. Ele praticamente fez parte da banda. O Roberto é um cachorro PCD que foi abandonado e, quando foi adotado, recebeu uma montanha de amor do Caio, novo tutor dele e hoje ele é um cão muito feliz”, conta entre risos o trio.
Além do videoclipe de “Dógui”, as outras músicas também recebem visuais que complementam o universo, assinados pelo ilustrador GUXX e o motion designer responsável pelas animações Vinícius Kos.
A profusão de camadas de sons no novo trabalho denota que a Tuyo não subestimou o público alvo do disco. Machado conta que o trabalho de produção junto à Érika foi em direção a não limitar os arranjos para simplificar demais, mas também não trazer elementos desnecessários às canções. “Foi uma coisa de entender que é um elo entre várias pequenas fases da infância, de olhar para aquele arranjo, aquele sentimento. Às vezes a criança não gosta de ouvir música infantil, por exemplo, então foi natural pensar na época em que éramos pequenos e a gente já entendia as músicas de adulto que tocavam na rádio”, explica.
Com o eu-lírico em primeira pessoa, as oito faixas partem da percepção da criança. O exemplo pode ser conferido na terceira faixa do disco, Pode Ficar Feliz: “Quando te falarem que seu jeito é de criança/ Pode ficar feliz/ É possível que tenham te confundido comigo”. O trio entende como salutar essa transferência de protagonismo para os pequeninos, sem mergulhar em pedagogias hiper-complexas.
“É um assunto delicado para alguns adultos revisitar a própria infância. A gente é estimulado por tanta coisa e dificilmente adultos como nós são provocados a verem as infâncias de um jeito tranquilo, sem tanta violência, então o disco também funciona como um catálogo de boas memórias”
A fluidez da entrevista, sempre soando como um bate-papo entre bons amigos, reflete como funciona o processo de composição da Tuyo. “Somos intuitivos na hora de decidir as vozes. Eu escrevo para a Lio fazer a voz, às vezes ela escreve para mim, ou o Machado para as duas. Acontece de um querer colocar a vozinha na gravação da outra. A percepção do Machado conta muito. No geral, nosso trabalho de composição é muito fluído”, revela Lio com complemento de Machado. “É divertido, é como montar uma prateleira de livro. ‘Separamos por ordem alfabética de autor ou por categoria?’. No fim, a gente se diverte imensamente fazendo”.
FAIXA A FAIXA
1. Acordei – “Esta canção recupera um pouco do comportamento da Lay quando era criança, a mente que flutua, a imaginação que é livremente conduzida pelos estímulos ao redor, o livre pensar naquele momento especial de encontrar o dia depois de dormir. Tentamos construir um ambiente sensorial com uma série de provocações sonoras – como bolhas, peixes, risos. Abrimos o disco provocando o ouvinte a abrir mão do pensamento linear, adulto, sob controle na tentativa de estabelecer logo de início esse acordo com a infância, com a mente que se deixa conduzir pelo mundo ao acordar. A composição se apresenta sob uma vestimenta mais experimental com recursos do lo-fi que está presente na nossa linguagem desde o início”.
2. Dógui – “Aqui executamos um plano antigo de trazer uma espécie de garage music pra conversar com os nossos violões. Em primeira pessoa justificamos o encontro da criança com o animal de estimação. Um cenário que ultrapassa contrastes culturais, que permeia as infâncias todas ao redor do mundo e em qualquer uma das épocas. Esse relacionamento da criança com o animal num episódio vivido ou imaginado por toda e qualquer pessoa na infância em toda e qualquer circunstância”.
3. Pode Ficar Feliz – “Nesta música selecionamos elementos do que ouvíamos no início dos anos noventa, quando experimentávamos a nossa própria. Tem um pouco de Tears For Fears, do jeito ‘Sting’ de alongar notas. Esses elementos nos serviram para pintar um cenário em que termos como “infantil” e “criança” são encarados pelo próprio público como um elogio. Quando adultos esses termos passam a ser aplicados para denunciar um comportamento imaturo, atitudes impensadas. Nesse poema advogamos em favor de uma perspectiva que resgata aspectos da infância que atestam o contrário. A extrema honestidade, a franqueza, a autoconfiança, o amor e o carinho ainda intactos, sem terem sido tocados pelas engenhosidades da vida adulta. Tudo isso foi a força motriz para construir essa canção, que também recupera ideias de infância trazidas por Milton Nascimento em ‘Bola de Meia, Bola de Gude’”.
4. Criança – “Como espécie de atualização do que já foi explorado por Paulo Tatit e Arnaldo Antunes em ‘Criança Não Trabalha’, que ouvimos ali no início dos anos 2000, nesta música escolhemos revisitar essa composição tão emblemática do Palavra Cantada ao trazer reflexões ainda mais contemporâneas sobre como a sociedade encara a infância. A composição foi embalada por influências dos discos de The Japanese House que ouvimos até a exaustão nos últimos anos por conta das tecnologias de processamento na música pop”.
5. Nota com Nota – “Este é o primeiro convite fora da primeira pessoa nessa antologia de poemas sobre infância. Direcionamos cada palavra à própria criança, provocamos esse jovem ouvinte pra um primeiro contato com o canto, o ritmo, a harmonia, o baixo, o que dá pra fazer com a voz em cima de um beat. Com um refrão cheio de onomatopeias e possibilidades sonoras convidamos quem nos escuta a deixar a voz ser a primeira condução pra construir ritmo, harmonia, silêncio e melodia. Vestimos esse poema com algum soundesign baseado num projeto desenvolvido pela Lay já a algum tempo, que resultou nessa condução sedutora a fim de trazer a criança pro universo da construção musical, como protagonista da canção para além da poesia”.
6. Tudo Tem Hora – “Aqui a gente volta pra o discurso saindo da criança em primeira pessoa redarguindo seus responsáveis em nome da hora da brincadeira. O que acompanha esse episódio tão democrático quanto o da adoção do pet é a linguagem “abertura de anime” com a qual já tínhamos flertado em “Paisagem” (vide Infinita, Devagar). Esse vocabulário do J-Rock parece distante com o rock japonês acontecendo do outro lado do mundo, mas é bastante do imaginário cotidiano da infância brasileira por conta da inserção dos desenhos japoneses na nossa grade televisiva na década de 60. A Partir de National Kid, Zoran, passando por Akira, até chegar em Cavaleiros do Zodíaco, Sailor Moon e os fenômenos Dragon Ball e Pokémon. Escolhemos recolher elementos do j-rock que pudessem criar esse acúmulo de tensão até o refrão, essa imagem da hora do caos da brincadeira sob os termos da criança, nas regras da criança, recuperando outra vez o espírito de imaginação livre, essa característica tão latente de todas as infâncias”.
7. Cantinho do Pensamento – “Esta faixa surgiu da tentativa de dar completude pra essa viagem no tempo, trazendo na lírica também os desagrados do cotidiano infantil. Para acompanhar essa contrariedade escolhemos mergulhar no Dub e outras expressões do reggae conduzidos pelo nosso disco favorito do momento, ‘Switched-On’ do Pachyman. Este álbum em específico faz uma espécie de homenagem às manifestações musicais jamaicanas em Porto Rico nos anos 90. Nos embebedamos desse disco pra construir o contexto de Cantinho do Pensamento, mirando nesse aspecto conscientizador do reggae brasileiro através de nomes como Edson Gomes. Esse tema controverso do castigo na infância com o objetivo de incutir na criança os acordos civilizatórios e as regras sociais que ela precisa seguir pra dar conta de existir no agora tá explicitado aqui, sem decisões pedagógicas a serem tomadas. Sob a perspectiva infantil a gente aborda esse tema tentando rememorar como era pra gente a ideia do castigo e o que poderia passar pela nossa cabeça na época”.
8. Quem eu Quero Ser – “Esta é totalmente a energia máxima da estética Tuyo. Muito sentimento vertendo, perguntas simples que ainda não respondemos mesmo adultos, coisas que nós começamos a tentar decidir muito cedo e nunca mais paramos de configurar. Que tipo de pessoa eu sou? Que tipo de gente eu posso ser, que escolhas eu sou capaz de tomar e lidar com seus desdobramentos? Esse tipo de questão aparece na nossa mente bastante cedo. É que a gente esquece. Inserimos áudios recuperados de uma das festas de aniversário do Jean criança, ali pelos 7 anos. Esse arquivo já tinha aparecido em Fragmentos e escolhemos recuperá-lo novamente neste trabalho na intenção de dar ainda mais contexto pra essa investigação interminável sobre quem somos e quem seremos. Nessa última faixa embalamos a ilustração da infância com a tese de que há espaço para tudo, de que há chance. A esperança, característica máxima do que a gente compreende criança. Por isso, é a que dá nome ao disco”.