A Som Livre lança “Origem”, álbum que apresenta 12 músicas gravadas por Djavan, um dos mais importantes e criativos artistas da Música Popular Brasileira, antes de lançar seu primeiro LP autoral “A voz, o violão e a música de Djavan” (1976). O projeto, que pode ser considerado “o disco antes do primeiro disco”, chegou em todas as plataformas a partir do dia 04 de dezembro. Entre as faixas, até o momento inéditas no digital, estão algumas composições do início de sua carreira, além de canções que o artista interpretou em trilhas de novelas, coletâneas de sucesso da época, projetos de carnaval e compactos – hábito que as gravadoras cultivavam no início dos anos 1970.
“Origem” carrega em si a história de uma relação rápida e intensa entre um novo artista e uma gravadora também nascente. Enquanto Djavan galgava seu espaço na cena real da música popular através de seu talento inebriante, a Som Livre lançava o primeiro grande artista formado por ela a partir das trilhas de novelas – mas não só. Como era de costume na época, a gravadora encomendava especialmente as trilhas sonoras aos compositores, cenário ideal para o surgimento de novos nomes, e Djavan foi o maior deles.
“Esse disco, apesar de mostrar o jovem cantor e compositor, já traz uma ideia clara da personalidade musical, tanto nas canções próprias, conduzidas pelas levadas de violão bem singulares, como na maneira autoral de cantar músicas que foram escritas por outras pessoas. A página em branco de uma carreira ao mesmo tempo sofisticada e muito popular!”, comenta Max Viana, filho do Djavan e responsável por conduzir o processo de remasterização das músicas.
Natural de Maceió – AL, Djavan chegou ao Rio de Janeiro em 1972 para tentar a sorte no mercado musical. Enfrentou um longo ano até conseguir sua primeira oportunidade com a ajuda do locutor esportivo e seu conterrâneo Edson Mauro, que o apresentou ao experiente produtor musical João Mello, conhecido por trabalhar com nomes como Jorge Ben e Elza Soares. Encantado pela musicalidade do artista, Mello o levou diretamente a João Araújo, diretor da Som Livre responsável por arranjar o primeiro emprego do cantor na cidade – como crooner do conjunto do pianista Osmar Milito na boate 706, no Leblon – e por abrir as portas de sua gravadora para aquela que seria uma das maiores vozes do nosso país.
A partir de então, o jovem maceioense teve a chance de gravar músicas de compositores já consagrados, como “Qual é?” de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, trilha sonora da novela “Os Ossos do Barão”; “Calmaria e Vendaval” de Toquinho e Vinicius de Moraes, trilha de “Fogo Sobre Terra”; e “Presunçosa”, da dupla Antônio Carlos e Jocafi para “Supermanoela”. Assim, entre o final de 1973 e o começo de 1975, de “Os Ossos do Barão” a “Cuca Legal”, era impossível ligar em uma telenovela exibida pela Rede Globo e não ouvir a voz marcante de Djavan.
Para além das trilhas sonoras, o artista também gravou na Som Livre outras quatro faixas que integrariam coletâneas das paradas de sucesso. Dessa forma, deu vida a “Samba da Volta”, outra parceria entre Toquinho e Vinicius de Moraes; “A Escola” e “No Silêncio da Madrugada”, dois sambas de Luiz Ayrão em medley; “Anastácio (Samba-enredo Para um Sambista Morto), de César Costa Filho e Walter Queiroz; e a marcha “Olá”, de Catulo de Paula. Com essas faixas somadas à experiência de palco adquirida nas noites do 706 Djavan finalmente chegou ao festival “Abertura”, realizado em 1975.
Inscrito pela própria gravadora por sugestão de Boni, então diretor artístico da Rede Globo, o cantor conseguiu, pela primeira vez, levar a um público maior uma composição própria. A música “Fato Consumado” conquistou a segunda colocação na competição e a maior repercussão entre suas concorrentes, fazendo com que a Som Livre lançasse um compacto duplo contendo quatro composições de Djavan, incluindo, além da já citada, o samba-canção “Um Dia”, “Rei do Mar”, parte da trilha de “Cuca Legal”, e a até então inédita “E que Deus ajude”.
“Origem” é um verdadeiro ato de celebração ao legado de um dos maiores talentos da música brasileira. Somos transportados ao início da carreira de Djavan e conduzidos por sua trajetória ao longo de 12 faixas cuidadosamente reunidas em uma obra que une, de forma ímpar, passado, presente e futuro enquanto mescla a história musical e cultural de nosso país.
“Os compositores da década de 1970 tiveram muita influência no meu trabalho de composição que se seguiu. Isso evidentemente em uníssono com tudo o que eu passei a ouvir dali pra frente. Eu sempre ouvi muito, eu sempre ouvi de maneira a poder abranger toda a minha sede pela diversificação. E, a partir daí, a minha música, a minha composição, foi ganhando novos horizontes. Foi crescendo exatamente por causa desse início e por causa de tudo que eu buscava ouvir”, finaliza Djavan.
FAIXA A FAIXA – Por Hugo Sukman*
– Qual é? (Marcos Valle/Paulo Sérgio Valle) – Primeira música gravada por Djavan, composta pelos irmãos Valle para a novela “Os Ossos do Barão”, que foi ao ar de 10 de outubro de 1973 a 31 de março de 1974. Djavan lembra que uma semana depois da estreia da novela e depois de muita expectativa, ouviu sua voz no rádio, realizando o seu sonho e o de sua mãe (que sonhava em ver o filho cantor de rádio). A produção, como quase todas as faixas de Djavan nesse período, é do também cantor e compositor Eustáquio Sena que, do Norte de Minas, especializou-se em produzir a vertente nordestina da Som Livre – o famoso “Acabou Chorare”, obra-prima dos Novos Baianos lançado pela Som Livre em 72 é produção dele. O arranjo é de outro grande maestro da Som Livre e da Globo no período, Waltel Branco, um dos preferidos de João Gilberto. Como a iniciante Som Livre ainda não tinha seu famoso estúdio próprio na rua Assunção, no bairro carioca de Botafogo, a primeira gravação da vida de Djavan se deu em outro estúdio do mesmo bairro, o Somil, na rua Álvaro Ramos, pelo técnico Célio Martins.
– Presunçosa (Antônio Carlos/Jocafi) – Também como “Os ossos do barão”, todas as músicas de Supermanoela foram compostas por uma só dupla, Antônio Carlos e Jocafi (que ao lado de Marcos e Paulo Sérgio Valle foram os mais prolíficos compositores de trilha nesse período inicial). Foi ao ar entre 21 de janeiro e 2 de julho de 74 e é em tudo igual à primeira novela de Djavan: um samba bem no estilo da dupla de compositores, com produção de Eustáquio Sena e arranjo de Waltel Branco, gravado no estúdio Somil por Célio Martins.
– Calmaria e vendaval (Toquinho/Vinicius de Moraes) – “Fogo sobre terra”, que foi ao ar entre maio de 74 e janeiro de 75, é a segunda trilha feita por Toquinho e Vinicius para a Globo – depois do megassucesso “O bem amado”, talvez a trilha mais importante de todas. De temática rural e nordestina, coube a Djavan gravar o lindo xote “Calmaria e vendaval”. João Mello, que assina a produção com Eustáquio Sena, fazendo jus à função de padrinho de Djavan na Som Livre, mostrou a Toquinho uma série de cantores da companhia que poderiam gravar as canções, e um chamou imediatamente a atenção do compositor. Era Djavan, escolhido para a faixa apenas por sua voz.
– A Escola/No silêncio da madrugada (Luiz Ayrão) – Compositor originário do subúrbio carioca do Lins de Vasconcelos e ligado à Portela, Luiz Ayrão fez grande sucesso sobretudo naqueles anos 1970. Imensos sucessos no meio do ano de 74 na voz do autor, em gravação na Odeon, a Som Livre convocou Djavan para regravá-los, em medley, no LP “Na boca do povo”, com os grandes êxitos do ano. São duas crônicas sobre o mundo do samba – “A Escola”, um samba de carnaval, lento, sobre a beleza de um samba enredo, e “No silêncio da madrugada”, um samba de terreiro sobre a mulher ingrata que vai embora, outro tema clássico. Djavan, ele próprio um cantor de samba personalíssimo, sai-se perfeitamente nos dois gêneros de samba, indicando o cantor original que seria.
– Samba da volta (Toquinho/Vinicius de Moraes) – No mesmo LP Na Boca do Povo, de 1974, Djavan revisita um dos maiores sucessos de Toquinho e Vinicius, lançado naquele ano pela dupla de compositores, na Philips. Mais próximo de seu estilo, Djavan canta o samba com evidente gosto, saboreando as notas da melodia de Toquinho e dizendo os versos de Vinicius, dialogando com um bandolim que faz uns contracantos, numa bela e pouco conhecida versão desse imenso sucesso.
– Olá (Catulo de Paula) – Marcha-rancho clássica, foi composta pelo cearense Catulo de Paula, compositor, cantor e ator radicado no Rio e mais conhecido por trabalhar as formas e temáticas nordestinas, mas que também passeou pelo samba e pela marcha de estilo carioca – como esta, bem lírica e nostálgica, e que cita até o Cordão do Bola Preta. Foi feita para o projeto “Carnaval 75, Convocação Geral”, da Globo, que começou em julho de 1974 e foi lançado no fim do ano. A ideia foi convocar grandes compositores, como Caetano, Gil, Roberto Carlos, Braguinha, Marcos Valle, Luiz Reis, João Nogueira, entre muitos outros, para atualizar e melhorar o nível das músicas feitas para o carnaval. Entre as quais está “Olá”.
– Anastácio (Samba enredo para um sambista morto) – (Cesar Costa Filho/Walter Queiroz) – Grande samba de dois compositores então em ascensão, o carioca César Costa Filho oriundo do MAU (o Movimento Artístico Universitário que revelaria também Aldir Blanc, Gonzaguinha e Ivan Lins) e o baiano Walter Queiroz, ambos compositores de diversos temas de novela naquele período. Este samba original, sobre um sambista que morre e chega no céu, foi regravado por Djavan na coletânea “Super paradão nacional (Consagração popular)”, a partir do sucesso que fez com César Costa Filho, gravação da RCA, durante o ano de 74.
– Rei do mar (Djavan) – Feita para “Cuca Legal”, que foi ao ar de 17 de janeiro a 13 de junho de 1975, teve produção de Eustáquio Sena, arranjo de Waltel Branco, gravada no estúdio Somil por Célio Martins, como todas as outras que Djavan havia gravado para novelas. Com uma diferença: “Rei do mar” é a primeira música de Djavan gravada por Djavan. Uma canção belíssima, uma balada que já anunciava o que faria no futuro o autor de “Oceano”.
– Fato consumado (Djavan) – Apresentada no “Abertura – Festival da Nova Música Brasileira”, festival com o qual a Globo queria revitalizar o velho formato, extinto em 1972 depois de uma breve decadência por interferências que iam da Censura aos interesses das gravadoras, “Fato consumado” tirou segundo lugar superando grandes compositores que iam de Alceu Valença e Jards Macalé a Luiz Melodia e Hermeto Pascoal. Perdeu para “Como um ladrão”, de Carlinhos Vergueiro, mas, o que importa é que seria a música mais popular do festival. Mais do que isso, apresentou ao Brasil, em horário nobre e grande audiência, o cantor e compositor Djavan em seu melhor estilo: o do samba inovador, quebrado, sincopado, com uma divisão própria, um tipo de melodia e letra únicos. Regravado de forma mais concisa no primeiro LP de Djavan um ano depois, o que temos aqui é a gravação original, do álbum do festival e do primeiro compacto autoral de Djavan na Som Livre, com arranjo grande, orquestral, calcado nos sutis comentários dos instrumentos de sopros e coro feminino, além é claro de seu suingadíssimo violão. É a faixa que fez Djavan ser de fato conhecido.
– Um dia (Djavan), Lançado no mesmo compacto duplo de “Fato consumado”, em 1975, arranjo grande de cordas, de Waltel Branco, é um típico lado B para um samba de sucesso no lado A: um samba-canção belíssimo, desencantado mas esperançoso sobre as ilusões do amor, assim como “Rei do mar” (e de tantas canções que Djavan faria), com uma pegada reflexiva e existencial. Djavan já se mostra aí um letrista original: “Qual será do tempo que eu preciso/Pra que eu possa entender/Me acostumar com essa ilusão/Outro coração não vai poder me enganar”. Puro samba canção. Só que um pouco diferente, feito por um compositor novo.
– É hora (Djavan) – Única canção desta leva composta por Djavan depois do lançamento de seu primeiro LP de 1976, o samba “É hora” foi feito para a novela “O astro”, que foi ao ar de 6 de dezembro de 1977 a 8 de julho de 1978, às oito, com imenso sucesso. Já encarreirado no sucesso e com o seu próprio estilo de samba consagrado nos últimos dois anos, Djavan chega com algo muito pessoal, uma daquelas melodias cheias de curvas, um refrão poderosíssimo (“Por que o rio desagua no mar”), sem deixar de ser samba, ser popular, e descrever perfeitamente a crônica urbana que a novela exige. Embora composta depois das demais, entrou em “Origem” por, como aquelas primeiras canções, ter sido feita e gravada de encomenda para uma novela e não para trabalhos autorais de Djavan. Pertence, portanto, àquela primeira fase, além de ser inédita nas plataformas digitais.
– Romeiros (Djavan) Lado B do compacto lançado em 77 devido ao sucesso do samba “É hora”. Muito provavelmente – pelo gênero nordestino, pela descrição que faz de um Nordeste muito religioso, católico, como o ambiente da novela; e pelo arranjo grandioso, moderno – foi uma das canções que seriam usadas na trilha sonora da primeira versão da novela “Roque Santeiro”, em 1975. Djavan lembra que não a compôs especialmente para a novela, nasceu espontaneamente – o que reforça seu vínculo com o tema sertanejo, que remete à sua infância em Maceió, em que via e ouvia os cantadores vindos do sertão, e as viagens por todo estado de Alagoas nos tempos em que tocava em bailes com seu conjunto. “Romeiros” ficou perdida após a censura da novela, e foi lançada dois anos depois no compacto. Representa muito bem esse período anterior ao primeiro disco, de músicas que fariam parte de trilhas de novelas. De toda a forma, é uma tremenda canção que, como todas as outras desta série, pela primeira vez chegam ao ambiente digital e suas plataformas. Para alegria dos fãs, júbilo dos pesquisadores e o preenchimento de uma lacuna fundamental não só da carreira de Djavan, como da própria história da música popular brasileira.
*Hugo Sukman é autor do livro “Som Livre – Uma biografia do ouvido brasileiro” (Globo Livros, 2024) e do texto biográfico dos três volumes de “A música de Djavan” (Editora Luanda, 2008)
Sobre a Som Livre
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