Cristal é um nome pode refletir pureza; além disso, ele se associa a aspectos como espiritualidade e harmonia. Trazendo para o contexto musical, ter esse nome como um dos principais da cena atual faz com que apenas uma palavra possa a descrever: genialidade. Assim como a declara no início de seu disco, ela ‘nasceu epifania’.
A artista, que até então tinha enfoque no rap, lançou o álbum “Epifania” em agosto deste ano, que faz um verdadeiro resgate da música negra brasileira com foco na soul music. Com referências como Tony Tornado e Sandra de Sá, Cristal junta o antigo com o contemporâneo, escrevendo novos caminhos para a excelência da música. Geminiana nata, seu talento multifacetado a permite explorar diferentes linguagens artísticas, transformando ideias ousadas em projetos concretos em cada faixa, mantendo a autenticidade que a destaca na cena musical.
A epifania de Cristal
Em entrevista para o Pretessências, Cristal afirmou que não tinha dimensão de como o álbum se desenvolveria e como ela se portaria dentro deste universo do soul. “Veio de uma necessidade de fazer algo que eu realmente gostasse. Eu sentia que estava desconexa com o que consumia dentro de casa; sempre ouvi samba e MPB”.
A artista, dona de lançamentos como Ashley Banks e o EP Quartzo, revelou que precisou se desprender de seus antigos trabalhos para lembrar o que realmente a motiva a fazer música. Neste processo, surgiu Epifania. Ela mergulhou nas referências musicais que existiam dentro de sua casa, e foi com um disco do cantor Cassiano, especificamente com a música “Lenda”, que o nome do álbum foi decidido. E, assim, a artista iniciou uma imersão dentro dela mesma, se perguntando o que ela produziria musicalmente se vivesse naquela época dos artistas que tanto reverenciava. ‘Pura ancestralidade’, de acordo com ela.
“Voltei ao passado para buscar respostas sobre nosso presente e futuro. Foi um movimento consciente, mas que foi agregando elementos e referências intuitivamente. Nem tudo foi planejado, as coisas se encaixaram porque tudo tem um significado quando falamos de cultura negra; as coisas estão muito bem amarradas”.
Nessa imersão, Cristal tinha um foco: trazer a música negra do Brasil; ela buscou destacar suas raízes e influências. Nesta entrevista, ela levantou a questão de não conseguirmos dar nome a certas vertentes da música oriunda do povo negro. Nos Estados Unidos, por exemplo, costumam resumir tudo ao termo ‘black music’.
Ela afirma que quis levantar a música que desde sempre deu liberdade às pessoas pretas, “assim como o samba, o funk, e essa música que não se dá nome. Nos Estados Unidos falamos black music, e quando chegamos aqui [no Brasil], grandes nomes negros são misturados na música popular brasileira – até para não dar mérito. É como botar na mesma panela e tirar a cor de um gênero que tem identidade”.
‘Epifania’ conta com grandes parcerias, como a rapper e compositora Drik Barbosa e Paulo Dionísio, um dos maiores artistas do reggae brasileiro, que se mesclam perfeitamente na identidade que o disco exala. Ela quis usar suas referências – próximas e nacionais – para ‘criar um novo cenário de excelência negra e exaltar artistas que inspiram’.
Mistura de arte
Este álbum é uma explosão de diferentes formas de expressão artística. Entre as faixas, a presença do drama teatral se destaca, especialmente em “Corre”, onde Cristal utiliza elementos dramáticos para intensificar a narrativa. Nessa música, a artista mistura o rap com o soul, criando um cenário cheio de emoção.
Na construção da faixa, Cristal buscou traduzir a emoção e a energia que sentiu ao assistir a apresentação de Tony Tornado e o Trio Ternura em BR3, em 1976. A performance de Tornado, correndo sem sair do lugar enquanto canta, foi fundamental para que ela transmitisse essa sensação de urgência e desespero que a faixa carrega. “Eles ficam num movimento de corrida. Aquilo dá uma sensação de que estamos numa estrada, sentindo cansaço, desespero, uma pressa crescente. Quanto mais ele canta, mais a gente quer correr”, descreve a artista.
Mas a versão de Cristal não é só sobre a pressão de uma vida em movimento. É também um desabafo sobre as mágoas que a acompanham ao longo de sua carreira. Afinal, “Música é abrir feridas”, afirma. Para Cristal, essa faixa em particular carrega um peso emocional que vai além da arte — é um lamento pelas vidas de pessoas talentosas que, por inúmeras razões, não conseguem transformar sua genialidade em algo consolidado. Ela faz um recorte de artistas que cruzaram seu caminho e cuja trajetória foi interrompida pela mesmice, pelo comodismo ou pelo vício. “Eu quis representar isso na estrada que o Tornado interpreta, essa dificuldade, esse momento difícil que tantos artistas enfrentam.”
A ideia de transformar a dor em algo palpável é um elemento central na performance de “Corre”. Para Cristal, que admite gostar de um bom drama, a música se tornou uma forma de “dar nome a essa dor”. Assim como poetas buscam nomear tudo, a artista usou sua poesia para expressar o que muitas vezes fica sem palavras. O monólogo inserido na música é uma ferramenta que ela utiliza para fazer com que o ouvinte sinta o peso da história que está sendo contada.
A Cristal do futuro
Olhando para frente, Cristal enxerga uma jornada de mais coragem e autenticidade. A artista reflete sobre como, desde jovem, sempre foi vista como uma figura corajosa por assumir sua arte, mas sem entender completamente o peso disso. Ao longo do tempo, porém, ela enfrentou desafios impostos pela misoginia, machismo e racismo, comuns a muitas artistas negras no Brasil. Essas barreiras a fizeram questionar o que significa ser uma mulher negra dentro da indústria musical, revelando frustrações e os impactos que essas dinâmicas têm na sua carreira.
Apesar desses obstáculos, ‘Epifania’ representa uma resposta direta às dúvidas e limitações que ela enfrentou. Cristal admite que em certos momentos perdeu um pouco da sua coragem inicial, deixando de lançar músicas que poderia ter compartilhado, aguardando o “momento certo”. Essa autocensura a fez perceber o quanto estava se distanciando de sua verdadeira essência artística. No entanto, ao produzir o novo álbum, ela decidiu reconectar-se com essa coragem inicial, abraçando sua autenticidade e ousando trilhar um caminho que muitos considerariam arriscado.
Para Cristal, o lançamento do álbum, após três anos de desenvolvimento, foi uma forma de finalmente deixar de lado as expectativas da indústria e de ser quem realmente é, mesmo com medo. Ela compartilha que lançar um álbum de soul foi um ato desafiador, especialmente por ser uma artista conhecida pelo rap, e por estar distante dos grandes centros culturais do Brasil. Ainda assim, essa coragem trouxe um grande alívio e uma sensação de realização. Ao lançar o álbum, Cristal encontrou uma nova força em sua arte, percebendo que seu talento não tem limites.
Agora, com esse marco na carreira, Cristal se sente pronta para explorar outros horizontes musicais. “Eu posso fazer qualquer coisa: reggae, samba, funk. O que eu quiser”, afirma. O futuro promete ser de ainda mais liberdade criativa para a artista, que não se restringirá a nenhum gênero ou expectativa externa, mostrando que sua voz e visão continuarão a abrir caminhos na música brasileira.
Show na Casa Natura Musical
O primeiro show de ‘Epifania’ será na Casa Natura Musical, em São Paulo, no dia 24 de novembro. Programado para acontecer no mês da Consciência Negra, Cristal vê essa apresentação como um grande resgate da cultura preta, destacando o espírito de um verdadeiro baile black. A artista não esconde a empolgação para o evento, ressaltando que o show terá momentos emocionantes, com uma pegada teatral e momentos de celebração. “Vai ser lindo, eu estou muito ansiosa”, disse, com um sorriso enorme no rosto.
Além disso, Cristal preparou uma produção completa para esse show, trazendo todos os elementos do soul que marcam o álbum. A apresentação contará com uma banda ao vivo e backing vocals, criando uma experiência em camadas. “Todo mundo vai estar ali entregando tudo”, enfatiza. Os ingressos podem ser adquiridos aqui.
Além deste show, Cristal pretende rodar uma turnê nacional, levando a autenticidade e as mensagens de seu trabalho para diversas cidades. O projeto já está em andamento, e a artista revela que novos lançamentos também estão a caminho. Junto a isso, novas parcerias musicais reforçarão sua veia de pesquisadora e curiosa musicalmente, além de novas vertentes exploradas.
O público pode esperar algo sempre inovador, pois Cristal não se prende ao passado. “Nunca esperem o mesmo ou a parte 2 de algo. E sim a continuação, algo novo”, avisa.