Voz ativa em defesa do samba carioca, das tradições culturais, da resistência artística, Marquinhos de Oswaldo Cruz é herdeiro inconteste de dois personagens fundamentais de sua Portela do coração: Paulo Benjamim de Oliveira e Antônio Candeia Filho. O primeiro, o professor Paulo da Portela, fundador da azul e branco, o sambista que ensinou aos seus pares o seu real valor e os princípios que deveriam abraçar para terem o respeito e a projeção merecidos. O segundo, Candeia, um defensor ferrenho das tradições afro-brasileiras e fundador do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. Dois enormes compositores que tiveram suas vidas atreladas a muita luta. Marquinhos se espelhou em Paulo ao criar o Trem do Samba, em 1996, e em ambos para dar vida à já tradicional Feira das Iabás, dois eventos que jogaram uma luz sobre Oswaldo Cruz. Mas, assim como os dois mestres, tem o seu trabalho autoral, por vezes, ofuscado por sua militância combativa. Por isso, e por diversas outras razões, é mais que necessário olhar com muito carinho para “Agbo ato” (Deck), o sexto disco do sambista.
O trabalho é uma reflexão sobre sua rica vivência no samba, sobre o convívio íntimo com a fina flor da Portela, com artistas geniais e seres humanos de sabedoria ímpar, como Monarco, Argemiro, Manacéa, Jair do Cavaquinho. Marquinhos, desde criança, era encantado com as histórias que, sabiamente, guardou como lições singulares de vida.
Esse saber vira samba, por exemplo, quando responde a uma declaração infeliz de um companheiro de ofício que, seduzido pelo caminho mais fácil e medíocre do sucesso disse, certa vez, que “raiz, se fosse boa, não ficava embaixo da terra”. “Verde bandeira”, criada há mais de 20 anos em parceria com o craque Luiz Carlos Máximo, é uma preciosidade de resposta: “Pode tentar me podar/ pode tentar derrubar/fortalecido eu vou nascer de novo”. E tome aula de história do samba. A jaqueira da Portela, imortalizada por Zé Keti, a tamarineira do Cacique, a Mangueira que dá Jamelão. Eita, que bordoada elegante.
Os trabalhos começam com a faixa-título, “Agbo ato”, inspirada numa visita à Nigéria, no ano passado. A expressão iorubá, segundo Marquinhos, significa o desejo de que tudo dê certo, um sinal de esperança tempos bons. – Essa viagem me fez compreender muita coisa. Uma delas é que eu tinha uma certa resistência a compor coisas usando o iorubá. Talvez por ser uma tradição muito atrelada à Bahia, por conta do fluxo de escravos da região da Nigéria, entre outros países, no Período Brasil Colônia. Eu ficava naquela coisa do samba carioca, da nossa herança bantu. Hoje vejo que o samba vem de todos os cantos, nasce e renasce diariamente em muitos lugares.
Importante frisar a participação especial de Luizinho do Jêje, outro grande alicerce da banda que acompanha Marquinhos. Convidado por Marlon Sette, ele é um dos mais talentosos percussionistas brasileiros, ogan do Terreiro de Bogum e músico que já acompanhou Maria Bethânia, Gilberto Gil, Matheus Aleluia (Tincoâs), entre outros.
Sette é também parceiro no ijexá “A onça morreu, o mato é nosso”, feito sobre a expressão de Mestre Marçal. Do seu baú pessoal, Marquinhos saca a amorosa “O sonho dos meus versos”, feita para a companheira Maria Machado, pontuada lindamente pelo trombone de Sette. Maria também é inspiração para “A luz de um novo dia”, um samba-canção em parceria com Binho Sá, companheiro de rodas de samba suburbanas.
– Muita gente acha, e ficou mesmo estabelecido com o tempo, que o partido-alto é composto por um refrão, que se repete, e versos improvisados sobre uma mesma melodia. Mas, tradicionalmente, não era bem assim. Na hora dos versos, a melodia também ganhava detalhes de improviso, também entrava no pacote criativo. Então, sabendo disso, decidimos criar os versos para a gravação e improvisar, no estúdio, a melodia de cada parte cantada – lembra o compositor. – Foi uma forma de homenagear a história da Portela através de um dos seus personagens fundamentais.
“Agbo ato” é, pois, um disco para ser saboreado como uma iguaria fina, como se estivéssemos numa roda de samba que atravessasse a História, porque o talento, a qualidade, os músicos e a música são atemporais, como sempre o foram, desde os tempos “da moda antiga”.