Um filhotinho de cachorro que não sai do pé do dono enquanto ele estuda guitarra. Um menino-foguete aprontando todas. Crianças se divertindo e dando trabalho às mães no parquinho comunitário. O sorrisão radiante e gostoso daquela pessoa com uma energia massa. Estas e outras imagens podem ser vistas, sentidas e, principalmente, ouvidas em Imagens, o álbum de estreia de Ricelly Lopez – guitarrista, tecladista e produtor musical morador da Samambaia, cidade da periferia de Brasília – mesmo que quase nenhuma palavra seja dita na “Música Preta Instrumental” apresentada pelo artista.
Com uma pegada AOR (Adult Oriented Rock) e fusion única e original, o instrumentista mistura o melhor dos mundos em sete faixas paisagísticas, indo do ijexá ao rock progressivo, do R&B ao pop californiano, da MPB ao metal farofa, de forma natural e homogênea, criando um estilo único e cheio de identidade. Longe dos cacoetes espalhafatosos que se esperariam de um “disco de guitarrista”, em que a demonstração de virtuosismo muitas vezes ofusca a música, o trabalho apresenta um equilíbrio perfeito entre todos os instrumentos, timbres e texturas, em que a guitarra brilha, sim, muitas vezes, mas sempre a serviço da canção, sempre deitada sobre a cama muito bem feita pelo piano.
Muito disso se deve à troca intensa e generosa com os demais músicos do disco – Luís Porto e Esdras Dantas no baixo, Mateus Nygrom e Jhonata Pikeno na bateria e Felipe Fiúza na percussão – e o produtor Ricardo Mendes que assina também a bateria eletrônica, o violão de 12 cordas e o mellotron. O processo intenso de intercâmbios conceituais, criativos e de produção com Ricardo e colaboração engajada dos músicos do disco deram a forma final à ideias artísticas de Ricelly, acalentadas por anos. O resultado é um disco em que técnica e liberdade criativa se aliam para criar uma conexão com o ouvinte.
Tudo começou quando, certa vez, assistiu a um workshop sobre harmonia com Jesiel Candeia, grande guitarrista e professor que tinha o dom de tornar palatáveis e compreensíveis certos temas musicais complicados, chatos e espinhosos. Para explicar o que eram os “modos” na teoria musical, ele fez uma analogia com diferentes sensações corporais e emocionais experimentadas na chuva: o pé na areia molhada, um banho de lama causado por um ônibus imprudente, etc. O que deveria ser uma simples metodologia didática se tornou uma obsessão durante a formação musical de Ricelly e seu método criativo. “Houve uma explosão na minha cabeça, de que a gente consegue fazer essa analogia entre os sons e as demais coisas que a gente pode sentir. Comecei a fazer essas observações e daí foram surgindo ideias musicais”, explica o compositor, sobre o que poderíamos chamar, com alguma licença poética, de sinestesia musical.
Assim surgiram músicas como Áurea, a partir de uma melodia que ele “ouviu na cabeça”, como costuma dizer, e o remeteu ao sorriso contagiante de alguém que estava muito feliz e ficou marcado na lembrança; Ventos, composta em um dia em que ele estava apenas tentando “ouvir alguma coisa” e começou a improvisar ao som de uma brisa muito especial e específica que circulava pela casa em que ele morava; Song for Bob, que fez para seu cachorrinho que, desde filhote, ficava no pé dele sempre que ele estava tocando guitarra, e especialente enquanto ele compunha essa música; Rocket boy, a partir de um riff muito antigo e subutilizado, imaginando uma “criança doida, foguete, menino foguete, lombra”, e que ele fez para “afagar sua criança interior”; Reflexões, baseada na observação dos próprios pensamentos malucos; Luzes da quebrada, cujo título é autoexplicativo; ou Imagens, que dá nome ao disco, baseada na singela imagem de crianças brincando e correndo enlouquecidamente no parquinho da quadra. Cenas, pensamentos, sensações, vivências e emoções do cotidiano de um artista preto da periferia viram matéria-prima para as músicas de Ricelly, que agora podem ser compartilhadas com todo o o público.