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Cria da Cidade de Deus, Arthur Martins fala sobre o louvor preto, periférico e cheio de batuque de seu primeiro álbum

“Nos braços do amanhã” chega nesta sexta-feira (25/7) às plataformas. O artista conversou conosco sobre ancestralidade, negritude, fé e encruzilhadas estéticas e políticas
Cria da Cidade de Deus, Arthur martins fala sobre o louvor preto, periférico e cheio de batuque de seu primeiro álbum

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Ao pensar em música gospel, muita gente pode se prender à ideia dos tradicionais hinos, com letras diretas que entaltecem Deus. Mesmo sabendo que há uma variedade de gêneros e abordagens da chamada música cristã, é natural associar o gênero a algo pouco atrativo para a população em geral. Realidade diferente da música negra norte-americana que lhe deu origem.

No entanto, ainda é difícil encontrar artistas que explorem a musicalidade preta brasiliera dentro do estilo, e é nesse panorama que Arthur Martins surge como uma voz inovadora e inédita no cenário artistico, não só na igreja como fora dela. Oriundo da Cidade de Deus, famoso bairro do Rio de Janeiro, Arthur é um jovem artista negro e periférico que cresceu ouvindo a música da quebrada e apaixonado por ela.

E na quebrada, você sabe, é onde tudo acontece. Lá, tudo foi inventado e toca de tudo: do batuque do candomblé ào coral evangélico, do rap ao rock, do forró ao pagodão, do funk para rebolar até o chão ao louvor para erguer as mãos ao céu. Naturalmente, todas essas coisas acabam mesmo se misturando, e nas igrejas da periferia não é diferente. Mesmo com diferentes objetivos, a música e a dança das igrejas pentecostais absorve muito das tradições afrodiaspóricas, e vice-versa.

Arthur absorveu tudo isso e, pensando bem, é até estranho não ter ainda surgido um artista com a mesma verve, mas que bom que surgiu. Em seu álbum de estreia, Nos braços do amanhã, que vai ao ar nesta sexta-feira (26/7), 16 faixas compostas pelo intérprete misturam diversas influências de música negra e brasileira a texturas e tendênciass contemporaneas, criando um som moderno e atraente que poderia tocar tanto durante o lanchinho da célula da igreja quanto numa balada. As letras, por sua vez, se apropriam do universo cultural cristão para trazer questionamentos e apontamentos que vão além da crença individual mas podem tangenciar a existencia de qualquer ser humano.

Divulgação

Nesta entrevista, Arthur falou ao Pretessências sobre seus atravessamentos estéticos, o cruzamento entre política e espiritualidade como como o corpo negro louva na periferia.

Você veio da Cidade de Deus, periferia conhecida mundialmente por meio de filmes, músicas e artistas que vieram de lá. A sua música é, de algum modo, também uma narrativa sobre esse universo? Como o bairro influenciou na sua estética musical?

Fui e ainda sou moldado pela multiplicidade sonora da periferia. Na favela, você ouve todo tipo de música, por vezes uma atravessando a outra. Isso sempre me fez ter um interesse puro por música, não por este ou aquele gênero. E também de fazer os ritmos e os gêneros conversarem entre si.

Como um artista da periferia que faz músicas com temática baseada em uma visão de mundo cristã, você acha que sua arte tem um jeito diferente de transmitir essas mensagens e se comunicar com o público?

Minhas referências de fé são pessoas comuns que vivem nas periferias. Através das minhas músicas, tento transmitir uma espiritualidade construída no chão da vida comum, batida no barro e entoada no cotidiano. Uma das minhas canções, Reino da Esperança, diz: “Lá no Reino da Esperança, o de baixo é o maior.” Esse é o meu compromisso.

Ainda nesse tema, é notório que, nas periferias, a forma de se expressar e cultuar, assim como a música praticada nas igrejas pentecostais, tem uma influência e um sincretismo muito forte com estilos musicais baseados em cultos de matriz africana. Isso influenciou a sua sonoridade e incentivou sua pesquisa?

Os corpos carregam consigo memórias e práticas ancestrais. Apesar de um discurso um tanto embranquecedor de muitas igrejas evangélicas, as práticas rituais e sonoras são atravessadas ainda por uma condição negra que insiste em afirmar a prioridade do corpo, da dança, do batuque e dos afetos. Nisso, certamente, há uma influência religiosa recíproca entre religiões evangélicas e de matriz africana.

Neste aspecto, na faixa Ijexá, você fala que “viu Deus dançar um ijexá”, que para Ele “toque mais lindo não há” e que dançá-lo é “como falar com Deus”. Exemplificando o que conversamo até agora, o Ijexá é um ritmo ritualístico que veio ao Brasil por meio dos Iorubás, e está fortemente associado a cultos de matriz africana, embora com o tempo tenha se disseminado na música popular brasileira. Como as diferentes formas de cultuar a deus se relacionam para você?

Tenho profundo respeito e carinho por outras manifestações religiosas. Desde muito novo, sempre busquei compreender como pessoas de outras religiões cultuam. Acho que a música pode ter um papel importante na afirmação de uma sociedade plural e justa em que distintas religiões podem conviver em paz.

Durante muito tempo, as pessoas entenderam que há algo como uma “música da igreja” e uma “música do mundo”. Por outro lado, muitas das músicas de matriz afro tem origem em ritos e tradições religiosas. Você acha que, no meio evangélico, essas distinções ainda se justificam nos dias de hoje? Você acha que sua música ajuda a desmistificar isso?

Algo como uma “música religiosa” só pode surgir quando a religião se torna separada de todo o resto da vida. A religião passa então a ser um compartimento da vida, uma gaveta que a gente abre e acessa “coisas religiosas”. Eu parto de uma geração que começou a questionar essa separação e propor novas formas de integração entre a religião e a vida como um todo. Acho que uma boa maneira de propor novos caminhos está em reencantar a vida comum e cotidiana, em torná-la a matéria da composição. Com isso, acredito, a gente consegue reunificar “mundo” e “igreja”.

Como tem sido a recepção do público evangélico para as suas músicas? E do povo que não é da igreja?

Chamo o que faço de Música Pentecostal Brasileira (MPB). É uma tentativa de integrar o Brasil e a igreja, a partir de uma pesquisa sobre a multiplicidade rítmica brasileira e sobre o arcabouço estético-narrativo das igrejas pentecostais. A resposta do público evangélico tem sido muito boa, mesmo de não-pentecostais. Há muita gente evangélica querendo ouvir novos ritmos, novas misturas e conhecer o Brasil. E também há muita gente não-evangélica querendo compreender melhor os evangélicos, sobretudo após 2018 e o bolsonarismo. Eu vejo o meu trabalho como uma alternativa ao horror político que vivemos.

As suas músicas têm um pé na tradição e outro em sonoridades modernas urbanas. Você acha que há espaço para a inovação em meio a tantas tradições?

Árvores não são apenas as suas raízes. O tronco e as folhas são igualmente importantes. As tradições têm isso de se parecerem com as raízes, de dar estabilidade, mas a gente precisa podar e cuidar daquilo que não é raiz para que a árvore continue a dar frutos. Acredito que a gente precisa sempre renovar as tradições para que elas não percam o sentido. Tem muita gente hoje na música popular brasileira pensando um jeito de não perder as raízes, mas também de cuidar do tronco e das folhas.

Suas músicas parecem falar sobre espiritualidade, mas também tangencia temas sociais. Você acha que as duas coisas podem andar juntas? Muitos dizem que os assuntos de deus e dos homens não se misturam…

Não vivo uma espiritualidade alienada ou apartada dos problemas sociais. Minha fé está profundamente interessada nos dilemas que atravessam o Brasil. Como diz a canção Fundamento: “Tô cantando na esperança de criar um mundo melhor.” Esta é a minha utopia.

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Última atualização em: 15 de agosto de 2024 às 10:49

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