Mais de 20 anos separam o início da trajetória musical de Stefanie e o lançamento de seu primeiro álbum solo. “BUNMI” (Natura Musical) enfim se materializa, contando a única história possível: a das vivências, ao longo deste período, de uma rapper que se tornou referência no movimento pela densidade de suas rimas, desde o tempo em que as mulheres ainda eram absoluta minoria na cena hip-hop. O disco é um lançamento da JAMBOX, selo e beatbox cultural que também gerencia a carreira da artista.
A constelação de nomes que se juntaram a ela neste marco de um novo ciclo dão uma mostra do caminho que, entre um projeto e outro, Stefanie pavimentou ao longo destas duas décadas para se consolidar como um dos talentos mais reverenciados de sua geração no rap. Luedji Luna, Emicida, Rashid, Nega Gizza, Cris SNJ, Mahmundi, Kamau, Rodrigo Ogi, Jonathan Ferr, Iza Sabino, Ana Tijoux (Chile), Rincon Sapiência dividem os microfones com a cantora. A produção é de Grou e Daniel Ganjaman, que, conhecido pelos trabalhos com nomes como Criolo, BaianaSystem, Sabotage e Planet Hemp, assina também a direção musical.
Com origem no idioma iorubá, o nome “BUNMI” significa “meu presente”. “O disco é a celebração de cada passo que dei, das batalhas que venci e dos sonhos que ainda estou conquistando. Conseguir chegar até aqui, com certeza, é uma das minhas maiores vitórias. Este álbum é meu presente para o mundo, fruto da minha história e da minha alma. Cada verso carrega um pedaço de mim, e eu espero que ele toque quem ouvir, assim como ele me tocou ao ser feito. Cada vivência e cada passo que dei contribuíram para a formação da artista que me tornei e para o que este trabalho representa”, diz ela.
“FUGIR NÃO ADIANTA” abre o disco com uma reflexão sincera sobre enfrentar os próprios fantasmas e construir força a partir da vulnerabilidade. A participação delicada de Mahmundi no início da faixa prepara o terreno para um desabafo potente, que transforma dor em aprendizado. Uma faixa sobre coragem, presença e reconexão com o que realmente importa.
Acompanhada por Rodrigo Ogi, Stefanie traz à tona em “POR UM FIO” um relato cru e emocionante de situações-limite vividas por ambos — episódios de assédio, racismo, pobreza, violência e saúde mental, a travessia de Stefanie por momentos em que quase desistiu de si mesma, mas encontrou forças para seguir. E assim a canção é também uma prece em forma de rimas sobre livramento, vozes interiores que resgatam, fé e conexão com o que não se vê.
Um manifesto sobre autocuidado, maturidade e saúde mental em tempos de caos une Stefanie e a cantora chilena Ana Tijoux em “NÃO PIRAR”. A produção de Ganjaman e Grou faz ressoar a mensagem principal da faixa: cuidar da mente é também um ato de resistência. O refrão — “Cuidando da minha mente pra ela não pirar” — ecoa como um mantra urbano, uma chamada para respirar, resistir e seguir.
Single que antecipou o lançamento do disco, “DESCONFORTO” é um poderoso relato sobre o impacto do racismo nas pequenas e grandes violências do cotidiano. Com lirismo cortante e sensibilidade afiada, Stefanie transforma vivências pessoais e de pessoas próximas em verso, construindo uma narrativa que é denúncia, mas também um chamado coletivo por empatia, justiça e transformação. “Desconforto” não pede licença: ela entra, mexe, provoca — e, acima de tudo, faz pensar.
“MUNDO DUAL”, com Jonathan Ferr (ao piano e baixo), é um mergulho profundo nas dores e curas que moldaram a artista, como a morte de seus irmãos, o fato de ver a própria mãe enfrentar o luto, em contraponto com a potência da maternidade, a fé na ancestralidade e o renascimento através do amor. A canção é um retrato sensível de como a dualidade — entre luz e sombra, alegria e sofrimento — faz parte da nossa jornada e pode ser transformada em força.
Adentrando a segunda metade do disco, “NADA PESSOAL” propõe um mergulho íntimo no universo do autoacolhimento e da solitude consciente. Stefanie expõe as camadas do silêncio que cura, da ausência que protege e do espaço necessário para se reencontrar. Limites emocionais, autoconhecimento e a importância de respeitar o próprio tempo são o pano de fundo deste registro na direção de um retorno a si mesma.
A força feminina em sua máxima potência marca “OUTRA REALIDADE”, com participações de Iza Sabino, Cris SNJ, Nega Gizza e DJ Negrito nos scratches, a música é um manifesto coletivo e visceral sobre desigualdade social e luta de classes. Afiadas e trazendo perspectivas pessoais, as MCs denunciam as barreiras estruturais que limitam sonhos, escancaram a ausência de oportunidades e revelam as dores da exclusão — sem abrir mão da força, da criatividade e da esperança que movem as mulheres pretas no Brasil.
Uma celebração do rap nacional e um encontro histórico une Stefanie a Rashid, Kamau, Emicida e Rincon Sapiência em “MAAT”. Neste panteão lírico, passado, presente e futuro se conectam em rimas que evocam verdade, equilíbrio e justiça — os princípios da deusa egípcia que dá nome à faixa. A última vez que esses cinco nomes dividiram uma mesma track foi em 2008, na clássica “Porque Eu Rimo”, do disco “Non Ducor Duco”, de Kamau. Dezessete anos depois, eles voltam a rimar juntos, agora sob a liderança de Stefanie, que encerra a faixa com um verso que é pura afirmação de potência: “Se eu acender sóis como Aza Njeri, já vou ser vitoriosa”.
O amor que cura e transborda é o tema de “PURO LOVE”, parceria com Luedji Luna. Enquanto Stefanie reivindica prazer, respeito e leveza, a presença de Luedji amplia o campo emocional, trazendo sua voz como força que acalenta, encoraja e ilumina o caminho de quem escolhe amar e viver com verdade. Com referências que atravessam cultura pop e espiritualidade, o som caminha entre a força e a suavidade, uma verdadeira celebração da existência preta, feminina e potente. “Eu sou puro love / dessa fonte prove / me molho se chove / é o amor que me move”.
“PLENITUDE” fecha o disco com alma, fé e verdade. É o fim da jornada, a dor ficou para trás e há o reencontro com a esperança, numa transformação guiada pela espiritualidade. A plenitude está em confiar sem ver, em encontrar luz no caos e força no invisível. Um áudio da tia de Stefanie decreta o fim do ciclo como uma bênção, com afeto, ancestralidade e amor.
“BUNMI” foi selecionado por Natura Musical, no Edital 2022, ao lado de nomes como Brisa Flow, Canto Sagrados Kariri-Xocó, Festival Latinidades, Circuito Manacaos, Malka Julieta e Quilombo Groove.