“A Festa de Léo” reúne uma miscelânea de figuras reconhecíveis por qualquer brasileiro, mas sobretudo os que compartilham questões de classe, raça e gênero encarnados por seus protagonistas. Dirigido por Luciana Bezerra e Gustavo Melo, o longa-metragem protagonizado por Cíntia Rosa acerta na condução sensível de uma situação comum a tanta gente espalhada por este país cheio de escassez e ausências, mas também rico em amores, compreensões e conquistas.
A força feminina negra é o guia do filme. Rita (Cíntia Rosa), deseja dar para o filho Léo (Arthur Ferreira) uma festa de aniversário pelos seus doze anos. Porém, com a chegada da data, descobre que todo o dinheiro que havia juntado para a festa foi roubado por Dudu (Jonathan Haagensen), seu marido, para pagar uma dívida perigosa com os moradores locais. A trama gira em torno da corrida contra o tempo da busca de Rita por formas de conseguir o dinheiro para salvar a vida do pai de seu filho e poder comemorar com ele o aniversário.
“A minha identificação foi imediata assim que recebi o convite da Luciana. A Rita está à minha volta. Ela é minha mãe, minha avó, minhas vizinhas, minhas tias. Apesar de ter essa parte dolorosa sobre a criação e faltas que há para crianças da favela, pretas e pobres, há uma grande história de amor, uma busca das redes de apoio. Minha identificação com a Rita foi imediata. Eu me emociono até hoje quando vejo o filme. Eu continuo chorando porque essa personagem me arrebata. Essa dedicação ao filho, aos filhos das outras, é puro amor”, conta Cíntia.
A dinâmica entre mãe e filho cativa, não só pela performance sensível da atriz experiente e a condução certeira de Luciana Bezerra e Gustavo Melo, mas pela presença carismática de Artur Ferreira, conhecido como Nego Ney. “Foi muito fácil trabalhar com ele. A gente tinha tanta sintonia que nem precisava conversar muito o que ia acontecer na cena. A gente lia e ensaiava, mas na emoção, as coisas transbordavam com uma naturalidade, sabe? Foi muito gostoso. Parecia que a gente já se conhecia há muitos anos. Parecia que ele era realmente da minha família”, confessa Cíntia.
A felicidade com a concepção da protagonista não fica só em Cíntia. Luciana não esconde a efusão ao falar da atriz. “Eu podia ter Ritas incríveis, cada uma melhor que a outra, mas a Cíntia é a Rita há bastante tempo. Ela está nesse projeto desde o começo. Eu conheço ela desde os 16 anos de idade e eu e o Gustavo conversávamos sobre como ela era uma atriz maravilhosa. Isso deixou a gente muito animado. Ela mudava, ficava sexy, ficava sofrida, uma artista muito versátil. Então, enquanto a gente filmava, nós pensávamos ‘Cara, se não fosse essa mulher, o que a gente ia fazer’? Além da parte artística, ela é uma atleta, subia e descia escada o dia inteiro”, conta.
Primeiro longa produzido pelo núcleo de cinema do Nós do Morro, “A Festa de Léo” conta com um elenco formado pela comunidade vidigalense, com nomes como Jonathan Haagensen, Arthur Ferreira, Mary Sheyla, Neusa Borges, Babu Santana, Jonathan Azevedo, Luciano Vidigal, Márcio Vito, Roberta Rodrigues e Thiago Martins. “A nossa vivência como grupo ajudou muito. Saem sempre coisas criativas, algumas foram para o mundo. A maior parte dos filmes nacionais que estão saindo tem alguém do Nós do Morro. Ensinar arte para o povo da favela! Que ideia! O grupo dá uma contribuição incrível para o audiovisual brasileiro e este filme é um presente para gente, para mostrar ao mundo o que podemos fazer”, relata Luciana.
Apesar do longa ter rendido para Cíntia Rosa o prêmio de Melhor Atriz no XV Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa (FESTin), realizado dia 11 de maio, no Fórum de Lisboa, a atriz não ganhou ainda o destaque merecido em outras produções. A situação denota uma condição mais que questionável da indústria audiovisual brasileira. “Ainda não aconteceu abertura de trabalho para mim. Estou esperando isso. Ganhar prêmio é muito bom, é um reconhecimento da trajetória de persistência, sendo uma atriz preta com vários nãos, portas que se fecham, mas eu sinto uma vibração muito boa, uma receptividade sobre meu trabalho, sobre o que expressei com esse filme e estou esperando todos os convites possíveis”, revela.
A vivência negra feminina de Cíntia é similar com a de Luciana, que demorou dez anos desde a primeira tentativa de tornar “A Festa do Léo” viável. “ Ele se chamava ‘Festa de Favela’ e o Gustavo e eu submetemos em 2014 a primeira vez a um edital. Muito tempo gestando, pensando e ainda assim, após tanto tempo, foi esse filme a ser realizado. Há muitos cineastas favelados tentando lançar seus filmes. Graças a iniciativas como “Nós do Morro”, nós somos muitos, mas acho impressionante como a gente levou tanto tempo. Fico me perguntando, com o currículo que eu tenho, com o currículo que o Gustavo tem, os prêmios. Como após os prêmios, ninguém chama a gente para filmar?”, aponta a diretora.
“Eu fui essa mulher a vida inteira, mas eu queria criar essa Rita que está na tela. Peguei uma coisa de uma e de outra mulher. Elas estão comigo. Na minha pele, na minha criação, no meu sangue. É como se eu estivesse estudado a vida toda para fazer a Rita” – Cintia Rosa
Para Luciana Bezerra, a mensagem do filme é universal por falar de amor, busca e faltas. A recompensa para o espectador é surpreendente. A escolha por tratar a favela sob um olhar além dos já abordados pelos pejorativamente chamados “favela movie” é muito bem-vinda. “Eu quero contar qualquer história que eu tenha vontade de contar. E todo mundo vai saber de qual localização que eu estou contando essa história. E minha localização é da favelada, filha da empregada que morava no quartinho de despejo, ainda que a obra não tenha essas personagens”, conta.
Sucesso em festivais, “A Festa de Léo” foi exibido ao público pela primeira vez ainda em 2023 durante a Première Brasil do Festival do Rio, tendo sido exibido também na 47ª Mostra de Cinema de São Paulo e na 27ª Mostra Tiradentes. No Brasil, o filme está em cartaz em salas do Rio de Janeiro, Niterói, São Paulo, Florianópolis, Belo Horizonte, Brasília, Vitória, Salvador, Recife, Fortaleza, Manaus, Goiânia e Belém. “Lançar um filme no circuito e ver o nome da sua obra em um letreiro de cinema é uma emoção que sonhei há muito e que vamos realizar depois de um projeto longo, com muitos companheiros comprometidos em fazer com que isso aconteça. ‘A Festa de Léo’ no cinema é vitória do coletivo. Agradeço a todos”, declarou a diretora Luciana Bezerra.
Ouvir Cintia Rosa e Luciana Bezerra falando com entusiasmo sobre o longa, e uma certa indignação sobre oportunidades e lugares possíveis à pessoas como elas, contamina na dose certa e incentiva a seguir fortalecendo as vozes dessas mulheres e dessas histórias.