Autora do livro “Exu-Mulher e o matriarcado nagô”, a escritora e jornalista fala sobre o apagamento da vertente feminina de Exu e sobre o discurso de ódio recebido pelas religiões de matriz africana
Em 21 de março foi celebrado o primeiro Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. No entanto, um ano após a instauração da data, o cenário de violência contra religiões afro-brasileira pouco mudou. Na verdade, houve um aumento de 17.000% nos processos judiciais nos últimos 14 anos envolvendo intolerância religiosa. Para falar sobre o assunto, conversamos com a jornalista, Doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP e Diretora de Comunicação Claudia Regina Alexandre.
Seja pelo aumento exponencial das igrejas neopentecostais, sempre agentes ativos de racismo religioso, a gente ou ao racismo estrutural que moldou nosso país e também nas opressões de gênero, há poucos caminhos visíveis para sair do atual cenário. Para a jornalista e especialista em religião, Claudia Regina Alexandre, parte dessa intolerância pode ser atribuído a um projeto de demonização de uma sociedade patriarcal cis heteronormativa, oriundo tanto do racismo estrutural quanto das opressões de gênero. Ela usa como base o orixá Exu, que tem uma representação masculina e feminina, mas a figura de Exu mulher não chegou ao Brasil justamente como parte desse projeto que demoniza Exu.
“O que eu tenho analisado aqui é que a gente falar de racismo, falar de todas as vertentes,
todas as classificações do racismo tem, é falar de um processo que ainda não foi superado no
Brasil. Então, se for falar em processo histórico, a gente está no país que por quase 400 anos
escravizou o corpo negro. Inicialmente, o tráfico negreiro africano e, depois, um processo que
durou 400 anos da escravização de homens e mulheres negras e suas famílias. O que dá para
compreender é que há a ausência de políticas públicas para superar esse longo processo de
de inferiorização do corpo negro, ele ainda não encontrou solução”, aponta Cláudia.
Segundo censo do IBGE , 54% da população se declara parda ou negra e, apesar disso, as políticas públicas de combate ao racismo segue praticamete inexistentes. Com um judiciário branco e as corporações policiais cooptadas pelos julgamentos baseados em fenótipos, nem mesmo a lei que torna racismo crime inafiançável é colocada em prática. “O que a gente vê é que o Brasil ainda não consegue superar aquela intenção de branquear a sociedade brasileira. Por que em vez de pensar políticas públicas de superação, de inserção do povo negro na sociedade, quando vem a abolição da escravatura, pensa-se primeiramente em branquear a sociedade brasileira? Pensa-se em construir uma sociedade como um simulacro europeu onde pessoas negras em 150 anos não existiriam mais no país”, denuncia a professora.
As trocas culturais multiétnicas africanas foram assimiladas pela sociedade brasileira mesmo que a branquitude tente negar. Os projetos eugenistas fracassaram, embora ainda em curso de várias formas. Para a historiadora, a miscigenação ocorrida no Brasil ultrapassa em muito apenas a questão da cor da pele. Segunda Claudia, nossa organização social como um todo traz muito das heranças negras africanas. “Essa cultura negra africana dá uma identidade ao país, mas não há valorização dessa herança até hoje, o que contribui para a violência racial.”
Quando eu apresento uma análise do processo de formação da sociedade brasileira e o que acontece com o elemento negro na sociedade brasileira, eu estou dizendo que a gente está diante de uma estrutura, então, o racismo é estrutural. No Brasil, quando a gente diz que o racismo é estrutural, a gente vai dissertar sobre formas que ele se retroalimenta e que ele se mantém. É um processo hegemônico o aparelhamento do Estado operando para manter pessoas negras e corpos negros em desigualdade, inferioridade. – Claudia Alexandre
Claudia Alexandre é autora dos livros Orixás no terreiro sagrado do samba: Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai e Exu-Mulher e o matriarcado nagô: sobre masculinização, demonização e tensões de gênero na formação dos candomblés, obras obrigatórias para quem quer entender as relações entre os Orixás e suas relações com aspectos do nosso cotidiano como o samba, raça e gênero. É no segundo livro que a autora explica o apagamento da face feminina de Exu quando diluído nas percepções patriarcais de liderança difundidas por um país de dominância cristã. Vale a leitura!
Confira mais do nosso papo com a jornalista, professora e escritora Claudia Alexandre
Acompanhamos um crescimento muito acelerado das igrejas pentecostais no
Brasil. Pode-se chamar de coincidência os ataques deliberados a terreiros das religiões
africanas, ainda mais com a ascensão ao poder político desse grupo religioso? Você acha
que falta para as pessoas das linhas de matriz africana se organizarem politicamente para
enfrentar isso?
Até o momento, que a gente saiba, não existe um outro país onde muitas religiões muitas denominações ocupam o mesmo estrato social. Então, a gente tem um campo religioso no Brasil com muitas tradições religiosas e isso já diz muito o porque não existe uma religião associada ao Estado. Então a gente precisa de política efetiva quando olharmos um campo religioso que quer disputar um campo a partir de violência, de aniquilação,de assassinatos, de crimes. O Brasil assistir um grupo religioso tornar o outro cada vez mais vulnerável é inaceitável. Num dado momento a Igreja Católica, fez tudo que hoje as religiões evangélicas estão fazendo com a religiões de matriz africana. No primeiro momento, a Igreja Católica queria poder e hegemonia. Queria controle sobre qualquer ser humano. Hoje, o que querem os evangélicos? Eles têm projetos de poder que num primeiro momento prezava a ideologia da prosperidade? Agora, neste momento, eles prezam a dominação.
A gente tem uma nação muito católica que construiu e que sempre disseminou que as religiões de matrizes africanas eram pecadoras. Nós teremos um país cristão com quase 50% de evangélicos e 50% de católicos. Isso diz muito. Está em curso uma disputa pelo campo religioso. E o que eles querem é ganhar o campo para os evangélicos usando o discurso de dominação e demonização.
Antes a narrativa comum era que os evangélicos traziam a “boa nova” e de salvação…
Quando você vai olhar as igrejas neopentecostais, aparecem os índices como sendo as que mais atacam as religiões afro-brasileiras, a gente vai encontrar a igreja Universal do Reino de Deus que aparece a partir do século 20 como uma grande oponente ou a que mais persegue porque quando a gente fala
oponente, a gente diz que tem uma luta, que estão se provocando, mas isso não acontece em relação às religiões afro-brasileiras. Quando a gente faz uma análise de discurso do neopentecostalismo, você vai ver que o discurso é um discurso de ódio que tem como alvo principal as religiões de matriz africana porque no processo histórico está mais facilitado manter essa narrativa de que negros em relação à religião são primitivos e cultuadores do demônio. Até os nomes que estão nos cultos em que alegam expulsar demônios, que eles dão nomes associados a um culto de matriz africana. Então, essas estratégias de dominação de campo confundem as pessoas.
Se a Constituição do Candomblé ou da Umbanda fosse mais masculina, haveria menos violência contra essas religiões?
Os primeiros terreiros de Candomblé, os primeiros ajuntamentos para as práticas tradicionais, onde a gente vai colocar práticas religiosas sem dar o nome de religião, já mostram registros de mulheres acolhendo esses ajuntamentos negrosm primeiramente para batuques, para manifestação da festa, mas também para manifestações religiosas. Então, a presença feminina sempre foi central no desenvolvimento de redes de solidariedade de sociabilidades. É a mulher negra que vai para dentro da casa grande primeiramente e que consegue arrecadar os primeiros dinheiros para as cartas de alforria, então a gente vê uma participação feminina negra crucial. Apesar das desigualdades, da dureza do sistema, ela consegue brechas para acolher e dar um sentido de ressignificação de humanidade para os seus e isso
aconteceu na formação dos candomblés.
As mulheres compram primeiro as propriedades, as mulheres têm a função do cuidado, de acolher, de fazer a comida de preparar as ervas de dar osbanhos de fazer os aconselhamentos espirituais, de fazer as rezas. Isso é muito feminino. Os primeiros terreiros, os mais tradicionais, ainda são matriarcados. Esse modelo de constituição dos terreiros acaba sendo transferido para formação de outras casas de culto. Então vamos ver a mulher sendo protagonista nesse núcleo dessa família como a gente não vê em outras religiões. A visão europeia e patriarcal atravessa o sistema da formação dos candomblés, que é o que eu aponto no meu livro Exu mulher e matriarcado nagô. Mulheres, em especial mulheres pretas, estão sendo mais afetadas pelo racismo religioso pois são líderes de 65% das casas de culto.
No seu mais recente livro, é trazido o destrinhcar da sua pesquisa sobre uma face de EXU desconhecida até para quem professa o candombé no Brasil, que é sua face feminina…
Outra coisa que ameaçava aqueles primeiros colonizadores e escravizadores era a organização social
africana, principalmente naquela região onde se cultuam orixás, Nigéria e Benin. A África
ocidental mostrou aos europeus invasores muitas sociedades onde o matriarcado era o sistema de organização e realidade de muitas etnias. Então isso foi muito demonizado.
As divindades cultuadas pelos africanos tem um livro. É um dos livros que eu referencio na minha obra que se chama A Invenção das Mulheres escrito pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Ela vai dedicar uma boa parte do livro dela para dizer que em África não havia gênero e hierarquia de gênero e que Exu era representado tanto como masculino quanto. Outros orixás também são cultuados de diferentes maneiras e vistos com gêneros variáveis e isso era natural.