Nascido Renato Alves Menezes Barreto, renascido para o mundo artístico como Froid, o rapper mineiro de 30 anos lançou seu quinto álbum de estúdio, o sonoramente variado “Queridinho de Deus”, que embora traga novas experimentações, segue com toda a assinatura característica do artista, que em sua carreira, trilha um trajeto singular na forma como projeta a carreira, sendo, talvez, entre os pares que surgiram na mesma geração, o mais incompreendido pela crítica, fato que não se tornou barreira para que angariasse uma base fiel de fãs que o consideram um filósofo do rap brasileiro.
Se em seu último disco, “Gado”, lançado em 2022, Froid usou algumas faixas para exorcizar alguns conflitos internos do passado (“Não há como copiar o nosso brilho nos olhos/ E nem aliviar o nosso peso nos ombros”, cantou em ‘Fanfic’), em “Queridinho de Deus”, o artista exercita a autoestima como homem negro e como uma das figuras mais emblemáticas do nosso hip hop atual ao longo de 20 faixas que se mostram coesas em sua mistura de boombap, afrobeat e dancehall. “Eu acho que o álbum precisava ter essas 20 faixas. Eu não tiraria nenhuma sob o risco da narrativa que construí perdesse sentido. Inclusive, eu queria até colocar mais faixas assim, saca? Eu não coloquei mais porque eu achei que a galera não ia ouvir tanto, tá ligado?”, explica entre risos.
Froid entende seu público e sabe que quem o acompanha não vai se importar de ouvir 20 faixas com suas divagações poéticas. Ele se notabiliza por lançar mixtapes e muitos singles entre os discos, invariavelmente com boa repercussão entre os fãs, com os números de visualizações e comentários no Youtube comprovando isso.
Sobre a ausência de traços melancólicos em “O Queridinho de Deus”, Froid serve um paradoxo: “Curiosamente, eu estava muito mais feliz na época do álbum anterior, eu estava numa vida melhor. Só que o “Gado”, ele é um disco pós-pandemia, foi bem quando as coisas começaram a voltar e acho que ele tem essa influência de como mudou o mundo e tal. Eu chego agora com mais raiva, o sentimento dele (atual disco) é raiva, só que também tem essa parada de aceitação, então, o outro eu ainda estava indagando algumas coisas e esse eu só estou aceitando”.
“ Eu já realizei o meu sonho com a música, falando assim, sem sacanagem, já sei por onde correr na música, “pela indústria alternativa”. Na série B também tem campeonato, tá ligado? Tem troféu. Eu não ligo de ser o primeiro da série B. É melhor do que ser o décimo da série A, pra mim não pega nada”
Mas não é como se hoje o músico não se sinta bem. Ele explica que é uma felicidade diferente e que a introspecção já cumpriu a missão em seu rap por enquanto. Isso se nota em faixas do trabalho recente, a exemplo da raivosa “Barbie” e de “Swish”, com participação de Vitão.
Froid escolheu ir pelo caminho do otimismo. Durante a conversa, se percebe que sua confiança não é apenas simulação. Parte disso passa pela crença que justifica o título do álbum. Para ele, falar de coisas da vida sob a perspectiva de um homem negro, vem acompanhado da certeza de que não se está sozinho na jornada, isto se falando em termos de espiritualidade. “Acho que é uma alternativa muito doida tu acreditar que Deus te escolheu pra passar pelas provações, tá ligado?”.
Para quem ainda preza pelo mínimo de poesia dentro do rap nacional, Froid não costuma decepcionar, mas não é um preciosista quanto aos temas abordados pelo hip hop. Entre o dedo sempre em riste do boom bap tradicional e a sanha hedonista do trap, subvertente do hip hop mais popular atualmente, Froid segue pelo caminho de não fazer juízo de valor.
“E eu não vejo a música diferente de uma fotografia, de uma pintura. Se o Leonardo Da Vinci fosse numa praça pintar uma parada, ele ia pintar o que ele ‘tava vendo, tá ligado? E aí quando um moleque vai e fala assim, ‘ah, eu venci na vida, a favela venceu, nóis tem um carro’, eu já não vejo como algo tão prejudicial ou benéfico, eu mais vejo como um retrato. O que que tá passando na frente dele, como que isso ‘tá passando na mente dele e ele ‘tá registrando e me mostrando isso. Então, basicamente é o que a sociedade precisa saber, saca? A realidade, os quadros, as pinturas dos lugares, das favelas, dos lugares de playboy, foda-se, não interessa”, aponta.
De fato, há uma rusga entre os detratores das novas narrativas do rap, visando ostentação e os defensores do gênero como um instrumento para cantar as vitórias financeiras da atual geração de meninos negros. Para o “queridinho de Deus”, é preciso encarar o atual momento do rap como uma coleção de crônicas, assim como se enxergou em sua época “Macunaíma” ou Clarice Lispector.
“Mas tipo, foda-se! Foda-se qualquer coisa, tá ligado? É isso mesmo, eu sou o queridinho, eu sou o escolhido, entendeu? Eu sou o cara, mano. Eu acho que eu cheguei nessa conclusão pra mim mesmo, tipo foi uma injeção de autoestima. ‘Não se preocupe, mano, que vai dar tudo certo, tá ligado? Você é o queridinho de Deus”’
Longe de tomar partido na atual rixa pública entre Drake e Kendrick Lamar, Froid nunca escondeu ser fã do rapper canadense. E foi através de uma das canções gravadas pelo cantor que ele conheceu o jamaicano Popcaan. Sem medo do superlativo, Froid conta que a faixa “We can done” mudou sua vida. ”Esse cara acabou com a minha cabeça, véi, porque ele tem umas colabs com uma galera do rap e foi o primeiro que abriu a minha cabeça pro dancehall, tá ligado?”, conta animado.
Entre outras referências que enriqueceram a forma de compor de Froid, está o nigeriano Burna Boy, conhecido por passear com louvor entre o rap tradicional, o afrobeats, reggae, ritmos típicos da Nigéria e o afropop. Não à toa, há o tempero reconhecível dele na atual sonoridade do cantor brasileiro, assim como o cantor latino Peso Pluma e os já citados Drake e Kendrick.
Se o hip hop atravessou as Américas para ganhar o Brasil e conseguimos colocar nossa identidade no gênero, apesar da popularidade atual, ainda estamos longe de exportar o que se produz aqui. Será que Froid, Djonga, Baco ou os lendários Racionais MC´s não seriam abraçados se tivessem a chance de serem os rostos da nossa cultura lá fora? Difícil dizer. Embora não possua os mesmos meios de produzir, as mesmas expertises, temos produzido ouro em termos sonoros e de poesia. O recorte de raça, mais uma vez se faz presente. “Se eu falasse pontualmente o que falta na nossa cena, não é nem tecnologia, porque a gente se vira nos trinta, mas talvez um acesso, por exemplo, na cena de produtores dos Estados Unidos, a gente tem muitas pessoas diferentes, de etnias diferentes. Aqui no Brasil, majoritariamente, é um cara branco que manda, sabe? Porque ele sabe mexer no computador, porque ele sempre teve um PC bom e a meninada negra não. Então isso influencia na música direto. O que esse cara ouviu? Porque se for ver um menor igual eu, a galera do rap, íamos no churrasco de família e tinha pagode, samba, MPB, o melhor, a nata. Se a gente parar pra produzir, a gente vai fazer uma parada incrível, porque a gente tem esse olhar sensível para a música, tá ligado? Mas o domínio da tecnologia, o acesso, saber falar inglês, os programas estão todos em inglês, eu acho que isso influencia diretamente na nossa arte, tá ligado? Então, volta um problema que não é nem da arte, é da sociedade mesmo. Falta informação chegando desde a base, no sentido mais profundo. Quantas câmeras fotográficas você viu quando você era criança, tá ligado? Quantas câmeras filmadoras você viu na sua frente? Quantas vezes o cara falou assim, ´Ó, se você apertar aqui você filma, ´Ó, isso aqui é uma lente´, ´Ó, isso aqui é um microfone pra gravar isso aqui?”’, dispara.
É o papo de visão de quem entende que o sonho da música acaba se perdendo quando você precisa escolher entre cuidar da mãe doente, ajudar em casa ou investir em equipamento e estudar engenharia de mixagem. “O hip hop é muito novo aqui, mas eu acho que a gente vai chegar lá, como fizeram com o samba, o pagode baiano, os caras gravam numa parada muito doida. Você encontra em Salvador uma estrutura de estúdios cabulosa, muito por causa do carnaval, que faz com que a exigência de produção tenha investimento e evolua.”
Ao contrário de nomes como Djonga, Baco Exu do Blues e BK´, Froid parece passar invisível aos olhos da crítica. A quantidade de matérias sobre os outros, citando-os em listas de melhores é grande, enquanto ele parece ter uma relação de indiferença com a imprensa, excetuando os veículos especializados em rap. Mal comparando, é como se o compositor fosse o Engenheiros do Hawaii do rap, grupo com fãs fiéis, mas longe demais da assinatura dos grandes jornais.
“Eu acho que sou o melhor com os recursos que eu tenho. Eu não sinto que não sou reconhecido pela crítica ou grande imprensa, eu sinto que eu só não pago. Eu não acredito que o site que conta uma mentira vai defender a minha história. Eu não preciso desse acesso, saca? Muita gente trabalha com compra de views, compra de likes, e eu dou a oportunidade do público ver como a coisa acontece de forma orgânica. Isso é importante pra mim, condiz com o meu discurso. Eu não imagino, sei lá, o Bob Marley pagando uma notícia na mídia hegemônica, falando para o assessor dele, ‘ow, vamos colocar o meu disco naquele lugar, eu pago’. Então, tipo, os meus heróis não caminhavam por aí e eu simplesmente não acredito nesse tipo de mídia”, desabafa Froid, que tem músicas gravadas com os principais nomes do rap brasileiro surgidos nos últimos anos.
Froid vai experimentar as músicas de “O Queridinho de Deus” em cima do palco em uma mini tour pela Europa. Serão três, passando por Lisboa (1 de agosto), Londres (2 de agosto) e Porto, ainda sem data definida.
Segue abaixo mais do papo com o rapper.
Eu sempre gosto quando você e o Makalister se unem, sempre sai coisa boa, é bom ver ele aí no disco de novo. Quando você estava gravando “O queridinho de Deus”, as canções foram pensadas no artista que entraria no feat ou você fez e falou, “Isso aqui tá a cara do Makalister, isso tá a cara da MC Luana”, como rolou a ponte aí pras participações?
Pode crê… pô, a do Makalister eu meio que fui lá em Floripa fazer um show e eu peguei uma passagem, quando o mano falou que a gente ia fazer o show também por lá, eu falei “pega uma passagem pra dois, três dias, que eu vou fazer uma música com o Makalister”. Aí eu levei meu estúdio, meu estúdio móvel, tá ligado? A gente fez no quarto de hotel, aí eu fui para o estúdio profissional produzir, mandei pra ele, ele foi e gravou também no estúdio de verdade assim. Só que a gente fez a música no quarto e eu chamei ele pro disco. Para a MC Luanna e o Laranjinha foi da mesma forma também, eu chamei, liguei pra fazer uma música pro meu disco.
Com o Dinasty foi mais estranho porque eles me chamaram pra fazer um feat no álbum deles, e eu fui, fizemos muito rápido, sei lá, quinze minutos, a gente já tinha gravado já, eu falei, “Caralho!” [risos] Falei, “Vamos fazer outra?”. Aí a gente fez outra, aí fez outra depois, tipo assim, a gente foi muito rápido, essa sessão foi mágica, assim, a gente deve ter feito umas três músicas em umas três horas, tá ligado?
A da Bione, eu fiz uma música e aí eu ouvi a música pra caralho e fiquei pensando, “quem que eu vou chamar pra essa música?”, tá ligado? Tipo… eu falei, “caralho, tinha uma mina que eu tinha trampado uma vez”, é porque ela discutiu comigo, que ela falou que o nome do disco dela era “Ego”, que eu não podia colocar Ego no meu disco, aí eu botei ego ao contrário. Aí eu lembrei dela, falei, “caralho, ela tem um som foda, ela vai chapar nesse som aqui! Vou mandar pra ela”. Aí ela foi e gravou, é uma menina de Recife eu conheci ela através disso, mas depois eu fui em Recife e a encontrei pessoalmente.
Tenho acompanhado as discussões de que caras grandes, como você e já outros nomes já estabelecidos na cena, tragam as meninas pra dentro dos feats, porque elas ainda não são tão reconhecidas quanto os homens. Em algum momento passou pela sua cabeça dar força pras minas?
Eu fiz isso consciente. Eu sempre tento trazer alguém nos meus discos, tá ligado? Independente do gênero, mas eu sempre tento trazer alguém que vai poder ganhar mais visibilidade e vai honrar o rap, saca? Eu já trouxe várias pessoas pra dentro da cena, tá ligado? Ao longo da minha carreira eu fico tentando sempre fazer isso. Agora, se eu tenho consciência dessa parada? Total. Tipo, de que as minas estão mais enfraquecidas no rap mesmo, mas não faço pensando assim, “Ah, eu vou ajudar ela, vou salvar o rap”. Fiz mais pensando assim, “ó, se tiver que ser alguém, tem que ser uma pessoa também que se encaixe ali. Tanto que eu chamei três minas para o disco, álbum, as três são pretas, as três estão num momento de ascensão?
O que espera que o seu fã de longa data ou até mesmo um fã eventual, sinta quando chegar na última faixa do álbum?
Porra, essa pergunta é maluca, mas, cara, acho que quando eu escuto, eu tenho uma sensação tão maluca de euforia. Eu escuto sozinho, direto. Eu vou escutando e eu vou entrando dentro da história, tá ligado? E tem uma hora que eu estou muito envolvido com a parada e que eu entendo a matemática que foi feita ali, até o final, até o último acorde. A sensação que eu tenho é de saciedade, assim, de “caralho, consumi um trampo”, sabe quando você vê um filme massa, que o final é foda e tu fala, “caralho, esse filme valeu a pena eu ter ficado, esperado uma hora”. E eu espero que quando a pessoa ouça “O Queridinho de Deus”, ela sinta isso. De verdade mesmo, toda vez que eu escuto qualquer faixa, eu fico, “mano, será que o cara tá ouvindo e tá sentindo essa parada aqui?” ou será que eu sou maluco? Essa é a maior lombra que eu sinto com a arte no geral, assim, com a minha própria arte. Eu consumo ela como ouvinte, tá ligado? Eu consigo me distanciar e ouvir no meu dia-a-dia com o coração aberto, então, acho que é essa a ideia, eu penso que o cara tem que sentir isso… tem mesmo, de obrigação mesmo, saca? Eu fico até puto, porque se o cara não sente isso, às vezes eu não gosto nem de mostrar a música pra ninguém, tá ligado? Que eu fico pensando, “se o cara não sentiu isso, eu vou ficar bolado com ele”.
Você não acha que, para angariar um público novo, um passo adiante com a relação com a imprensa seria importante?
É igual eu te falei, eu não tenho essa frustração. Eu fiz uma música que eu gravei no meu quarto e a música foi trilha sonora da novela da Globo (“Avec Moi”). Eu não paguei ninguém, eu não mandei mensagem pra ninguém, eu não precisei pagar produtor, gravadora, eu fiz a música, mandei mixar, chamei a Liniker, consegui o estúdio e deu tudo certo. Se for questão de notoriedade, eu caminhar para outros lados. A fama tem um preço que só o famoso sabe, tá ligado? Você não poder cagar, peidar em paz, mano, tipo assim, com medo de alguém vim ali te filmar, tá ligado? Só que eu não tô querendo correr por esse caminho. Eu acho que o meu grande sonho mesmo é trabalhar com cinema, eu quero trabalhar como estilista, tá ligado? Eu quero trabalhar com moda. O produto não pode ser eu, eu não posso ser o produto o tempo inteiro, é muita responsabilidade, pagar conta sendo ser de carne, eu sou ser humano, entendeu, viado? Você vê aí o Whindersson Nunes, milionarião, direto aí o bicho aparece com problema de cabeça, andando sozinho no metrô lá na Alemanha.
Eu não falo um bagulho pra pessoa acreditar, eu falo a minha vida. O cara vai ouvir a minha música e ele vai lá e vai saber, é a minha vida, é daquele jeito lá, não tem uma vírgula, véi, não tem nada que eu invente. Quem anda comigo, que é as pessoas que colam comigo mesmo, sabe, mano. O cara ouve a música e fala, “caralho, você tá falando daquele dia ali”. Não tem nada, não tem uma parada inventada, não tem nada, um bagulho que eu menti ali, que eu inventei, então… eu quero continuar falando isso.