Dexter é um dos nomes mais incisivos da história do rap brasileiro. Ao lado de Afro-X, integrou o 509-E, grupo seminal ao divulgar o ponto de vista dos detentos no inferno carcerário brasileiro. Canções como “Noite Infeliz” e “Oitavo Anjo” narram as agruras e a redenção de quem foi marcado pelas grades enferrujadas de nossas prisões.
Agora, o ativista integra o projeto “Direito de Sonhar”, podcast original da Pod360, onde recebe convidados em uma série de debates para falar sobre as possibilidades de transformação daqueles que são silenciados pelo sistema.
Conversei com o rapper justamente numa semana particularmente violenta para quem se importa com a vida da população negra no país. A violência policial capitaneada por um governo de extrema-direita vitimou o sobrinho do também rapper Eduardo Taddeo, enquanto, do outro lado da cidade, soldados sangraram a cabeça de uma idosa, outro jogou um rapaz de uma ponte de três metros de altura, entre outros vários casos já comuns para quem vive nas periferias.
“A gente não tá ali para defender o crime, não é isso. Estamos ali para falar de pessoas carentes de educação, cultura, informação e que são vítimas de um sistema que planeja todos os dias, a todo instante, a todo momento, que esse círculo vicioso continue existindo”
A cineasta Débora Gobitta escolheu Dexter para ser o rosto do projeto por conta da história do músico, salvo, além de sua resiliência, também pelo apoio daqueles que acreditam em saídas dignas e justas para os egressos desse sistema. Gobitta idealizou o podcast como uma extensão do documentário “Liberta!”, produção que aborda a literatura, poesia e a arte como transformação social dentro do sistema prisional.
“Eu já tinha sido convidado por outras pessoas para apresentar outros podcasts, mas nunca foi do meu interesse, porque eu acho que já tem muita gente competente fazendo, falando sobre diversos assuntos. Dentro do próprio rap, temos o Brown, o Thaíde. Quando a Débora e a Pod360 me chamam, foi diferente, com um tema significativo dentro da minha história, que tem tudo a ver comigo que está dentro da minha música também”, explica Dexter.
Embora pudesse, o cantor não seguiu pelo caminho de abraçar as possíveis milhares de visualizações que poderia conseguir entrevistando nomes famosos. Em “Direito de Sonhar”, podemos encontrar o episódio intitulado “Amizade”, onde o compositor conversa com aliados em sua trajetória: os juízes Jayme Garcia dos Santos Júnior e Iberê de Castro Dias. O primeiro foi responsável por apoiar o talento musical de Dexter, autorizando saídas do cárcere para que o rapper pudesse se apresentar; enquanto Iberê é parceiro na criação do premiado projeto “Trampo Justo”, uma iniciativa que visa promover autonomia para adolescentes em situação de vulnerabilidade. “Por isso que aceitei o convite, para poder convidar pessoas que não são conhecidas no meio da música, mas são conhecidas de outro jeito, referências em suas quebradas, desenvolvendo projetos importantes, se tornando importantes para muitos dos nossos que estão privados de liberdade”, aponta.
Dexter conduz com desenvoltura as entrevistas, claro, menos como uma sisuda sessão jornalística e mais como um bate-papo entre personalidades que se admiram mutuamente. Ele define os encontros como uma forma de “enxergar o ser humano que se encontra por trás de todas essas questões”.
Débora Gobitta e Dexter entendem que o sistema trabalha 24 horas por dia para encarceramento e morte da população negra. Eles se conheceram através das pesquisas da diretora sobre o sistema carcerário, que resultou no documentário Liberta. “Às vezes nos sentimos enxugando o gelo, mas a gente não pode ficar pensando muito nisso. Vamos resistir e acho que resistir é isso, ocupar”, reflete a cineasta.
“Dexter é exatamente o reforço positivo que acontece pouquíssimas vezes dentro do sistema. E esses exemplos precisam ser reforçados para que continue havendo movimento de recuperação”
Mais de 30 anos cantando discursando sobre as mazelas que acometem a periferia conferiram cansaço, mas não tiraram a indignação de Dexter. É claro que ele desejaria mudar de assunto, mas os problemas ao redor persistem. “O policial mata um motoboy por conta de R$ 7,00, ligo a TV e vejo outro rapaz sendo jogado de uma ponte, então um sobrinho do Eduardo Taddeo é executado porque pegou um sabão líquido. Você se sente desanimado, mas eu preciso falar do mesmo novamente. Você vai parar de falar do mesmo se ainda está acontecendo?”, se indigna.
Mas Dexter também entende que indignação sem ação de pouco vale. Através do podcast e também de suas redes sociais, ele tenta criar e entender as possibilidades através da comunicação, embora saiba que iniciativas como o Direito de Sonhar têm menos impacto que projetos voltados ao entretenimento puro e simples, ponto apoiado por Débora: “Eu fui fazer cinema justamente para criar projetos que abraçam os pilares de transformação social. Isso que me interessa, fazer filmes que se transformem em socialmente relevantes. É claro que tem que ter um entretenimento, né? O mundo é movido pelo entretenimento às maravilhas, mas eu acho que dá para unir entretenimento e informação. Por isso que eu faço o que eu faço”.
Reflexões sobre o Hip Hop e a Nova Geração
Enquanto falávamos sobre equilíbrio entre entretenimento e mensagem social, chegamos ao ponto da conversa que o assunto sobre a narrativa dominante no hip-hop brasileiro entra em cena. Antes dominado pelas denúncias sociais, quando o rap ainda era pária no mainstream, agora, o gênero está entre os mais ouvidos com suas letras sobre ostentação, mulheres e a afirmação da vitória via chegadas individuais. “Será que a favela venceu? Será que o sistema carcerário melhorou em alguma coisa? Será que de fato esse sistema carcerário tem a incumbência de ressocializar quem nem sequer foi socializado? É tudo uma indignação para quem enxerga um palmo além do nariz”, dispara.
O ativista entende que o ganho de espaço de narrativas miradas exclusivamente na ostentação é um indício de que “o capitalismo ganhou mais uma vez”. E não é que o veterano ache que se deva censurar a nova geração do rap, mas ter responsabilidade ao falar sobre o que elas querem falar, para não servirem apenas como mais um braço do capitalismo. Ter responsabilidades de falar o que elas querem falar, mostrar o que elas querem mostrar e tal”.
“Mas o hip-hop que eu conheço tem uma característica diferenciada, né? E o que eu posso dizer para vocês a respeito dessas pessoas que não ligam para essa responsabilidade, essa filosofia do hip-hop, é que elas não têm raiz, elas não vão criar raízes. E logo menos essas pessoas vão ser tão fodidas na vida delas que a única coisa que elas vão ter é o dinheiro, mas não o respeito”
Se o compositor sabe que ficar falando sobre as responsabilidades de empunhar a ideologia do hip-hop o transformam “num cara chato” para a geração atual, ele também deseja que a juventude vença, mas com consciência. Dexter relata que muitos jovens artistas relatam que sua música salvou a vida deles. É isso que me faz feliz, então é isso que eu faço, tá ligado? Lá se vão 34 anos de carreira e digo que o real hip-hop salvou a minha vida”, declara o rapper de 51 anos de idade. “Sabe, então está na hora de entender que nem tudo é dinheiro. Saúde mental não depende só do seu dinheiro. Então é isso irmão, o real, o hip-hop genuíno tem essência e quem tem essa essência vai ter raízes, e quem tem raízes tem longevidade”.
Como exemplo de quem alcançou equilíbrio entre irreverência descompromissada e dedo apontado quando precisa, Dexter cita o mineiro Djonga, dono de canções emblemáticas do rap contemporâneo como “Olho de Tigre” e “Ladrão”. “O Djonga tem música que fala de bobagem, coisas supérfluas, que é a diversão, e é bem-vinda, mas ele também tem uma puta consciência do que é ser preto no país. Ele possui consciência política, racial e social e é disso que eu estou falando”, declara.
“A ideia é fazer a nossa parte e deitar tranquilamente, ou não tão tranquilo assim no travesseiro e dormir, né? Eu digo tranquilo no sentido de que estamos fazendo a nossa parte tanto quanto gente que poderia fazer e não faz”
Débora espera que o podcast se expanda por mais temporadas, vista a inesgotabilidade do tema. Comparando o problema do sistema carcerário com um livro em que o conflito nunca fica datado (infelizmente), ela diz que há muito ainda a explorar. Entendendo que a densidade da proposta não atingirá as grandes massas, a pesquisadora espera que as entrevistas capitaneadas por Dexter e o documentário “Liberta” se tornem um registro histórico para entendermos o passado e mudarmos o futuro. “Há subtemas que a gente pode explorar que são super importantes assim. São pessoas que são formadoras de opinião que vão assistir, vão assimilar esse conteúdo e a nossa grande questão. Não é direita e esquerda, não tem corpo político esse espaço marginalizado e invisibilizado. Esse conteúdo é um advento super importante porque daqui a 40 anos alguém quer ouvir sobre o sistema carcerário dos anos 2024, ele vai saber o que foi, quem aqui estava lá falando sobre”.
Os sete episódios de “Direito de Sonhar” mostram um Dexter confortável em compartilhar sua própria jornada enquanto dialoga com amigos e colaboradores que também estão na busca de um mundo mais justo e humano. “Tem gente ganhando muito dinheiro com o sistema como é. Receber os convidados no podcast reforça que ainda há resistência onde poderia não haver nada”, conclui.
Direito de Sonhar está disponível no Youtube e Spotify