Chegará o dia em que não vamos precisar especificar que um artista é negro como sinônimo de tomada de espaço. Como jornalista, espero que as oportunidades sejam equalizadas a ponto de quando entrevistar um ator negro, possamos falar apenas da arte e não da luta por conquista de espaço. Dito isto, não é chegado esse tempo ainda, e tocar no tema das oportunidades tardias é inevitável, como foi na conversa com o ator Murilo Sampaio.
“As dificuldades para os atores pretos permanecem no mercado audiovisual, até porque é um mercado que visa o estético e o racismo sendo estrutural, não abrange a estética negra de forma universal. Então, as narrativas vão no compasso do seu tempo. Eu acredito que essas mudanças ainda são graduais, lentas e graduais, mas o streaming, assim como o cinema, tem aberto portas porque as narrativas são mais plurais, são mais heterogêneas e descentralizadas do eixo Rio-São Paulo e essa noção de classe média branca. O povo brasileiro é um povo negro, branco e indígena e quer se ver dentro das suas distinções, das suas heterogeneidades”, comenta Murilo.
Justamente as portas do cinema e streaming se abriram para que o ator não desistisse da carreira, que por um momento parecia relegada a pontas sem importância.
Atualmente, o ator baiano de 32 anos está no Prime Vídeo como o grande vilão da nova temporada de Dom, série original de sucesso baseada na vida de Pedro Dom, jovem filho de policial que se torna um dos assaltantes mais procurados do Rio de Janeiro.
Na trama, Murilo Sampaio encarna Colibri, traficante chefe da Rocinha. O personagem adora ostentar seu ouro e suas armas, é egocêntrico e gosta de andar pela favela cercado pelo seu bonde dourado. Colibri apareceu na segunda temporada, mas agora é o destaque, buscando acertar contas com Dom.
Murilo, a princípio foi recusado no teste para ser um personagem de menor destaque, evento que se mostrou positivo quando ganhou o papel de antagonista da temporada final da série. “Em 2021, por volta de novembro, eu morando em São Paulo, cinco meses depois do teste que fui recusado, me chamaram para tentar fazer o Colibri, já com a promessa de que ele seria o vilão da terceira temporada”, explica.
“Eu acho que o que atraiu a atenção deles foi a intimidação, não por um excesso de heteronormatividade periférica, que é o que normalmente esses caras apresentam, mas esse cara é capaz de fazer qualquer coisa, ainda que seu jeito seja um mistério, uma incógnita. Talvez, o modo como eu levei para o teste sem copiar trejeitos já estabelecidos. Afinal, eu tive que encontrar esse traficante em mim”
Embora Colibri seja um bandido, Murilo Sampaio fica feliz por poder dar estofo ao personagem e não ficar confinado ao puro clichê das produções passadas em favelas. Ele abraçou a oportunidade e se sai bem na temporada mais eletrizante de Dom
Se até pouco tempo atrás, Murilo amargava decepções com o meio, agora segue num crescendo na carreira e a lista de projetos inclui a novela “Guerreiros do Sol”, produção sobre o cangaço, com direção do vencedor do Emmy Rogério Gomes (o Papinha), que chegará na plataforma Globoplay em 2025. Ele, atualmente, também está numa série LGBTQ+ ( “Depois da meia-noite”) também sob direção de Gomes. A boa aceitação da produção rendeu a confirmação de uma nova temporada. “Milhares de vezes eu já pensei em desistir, inclusive porque eu não vi espaço assim. Quando eu vim morar aqui no Rio, eu tinha 24 anos em 2015. Nos primeiros anos eu consegui fazer peças com o Nós do Morro, com O Tuca Andrada. Fiz pontas em Impuros, em A Divisão, mas era isso, então na pandemia fiquei sem trabalho, mas agora as coisas estão acontecendo”, conta o artista que retornou para Salvador, mas voltou ao Rio para mais testes e ficou definitivamente.
Murilo ainda espera o lançamento da série “Vidas Bandidas”, da Starplus, em que atua ao lado de Juliana Paes, Rodrigo Simas, Larissa Nunes e Otávio Muller. Ele também está como protagonista das séries “Empurrando com a Barriga” e “Fim de Comédia”, ambas sem previsão de estreia no Cine Brasil. Em ‘Empurrando com a Barriga’, dirigida por Daina Giannecchini (3%), o ator é co-protagonista, podendo explorar sua verve para papéis de humor. “É um personagem preto que era um ator comédia, assim meio Foguinho do Lázaro Ramos. Gravamos em 2019 e foi o meu primeiro protagonista. Essa série não foi lançada ainda por questões burocráticas, mas foi uma virada de chave, sabe? Eu não preciso estar discutindo sobre violência, sobre tristeza, sobre dor, abrindo a minha ferida em toda obra que eu estiver presente. Decidi viver de arte e suspendi minha carteira da OAB ”, conta entre risos.
Para o cinema, ele rodou os ainda inéditos “Vilã das Nove”, ao lado de nomes como Alice Wegmann, “Oeste outra vez” e o pernambucano “A vida secreta dos meus três homens”, de Letícia Simões, em que interpreta um contador que sonha em ser bailarino. Baiano, Murilo Sampaio acabou de fazer seu primeiro projeto em sua terra natal: o longa “O sino”, de Isaac Donato, onde vive um pescador.
Em seu currículo, ainda há o filme “Pacificado”, onde atuou e fez seu primeiro trabalho como assistente de produção de elenco. Já na TV, o ator fez participações nas novelas “Malhação”, “Orgulho e Paixão” e “Segundo sol” e na série “Justiça”.
“Se eu dissesse que a minha maior ambição na vida é fazer uma novela seria mentira. Talvez por eu não ter crescido me vendo lá e por eu ter me feito também no cinema e no streaming. Eu passei a me acostumar com outro tipo de narrativa, mas obviamente que eu quero muito fazer novela primeiro porque é uma experiência que eu acho que todo ator precisa ter”
Murilo reclama que muitos papéis que chegam são contando narrativas estereotipadas, aquele velho padrão do preto sofrido ou do gay dramático, mas as coisas parecem mudar lentamente, diz ele. “Eu acho que tive a oportunidade nos últimos anos de poder explorar outros tipos de personagens, que são facultados a todos os pretos. Os atores brancos podem tudo e quase sempre a nós, pretos, é delimitado um lugar único no espectro de narrativa. Mas agora vejo coisas incríveis e mais diversas com a Tatiana Tibúrcio, a Bárbara Reis, enfim, tem muita gente.”
Algumas coisas ficam subentendidas quando dois profissionais pretos se encontram. Um jornalista e um ator batendo papo. Muitas questões são entendidas sem perguntar, como o fato de atores negros nem sempre poderem participar de testes para personagens que não sejam escritos especificamente para eles. Murilo tem consciência que a luta é longa e que alguns obstáculos estão delimitados. “Talvez eu jamais protagonize uma novela. É meio drástico dizer isso, e não é que eu me sinta feio, mas vejo os tipos de homens que viram galãs em novelas e quando não são brancos, precisam seguir um certo padrão que eu definitivamente não me encaixo fisicamente. Somos corpos heterogêneos, mas quando há um olhar para o galã, buscam sempre as mesmas coisas.”
Nos despedimos do bom papo com a esperança de que ambos nos encontraremos em vários outros trabalhos de destaque por aí.