O tempo no quilombo é diferente e não é o mesmo daquele que acontece dentro das cidades do ocidente. O tempo no quilombo é como aquele explicado por Leda Maria Martins, espiralar, cumulativo, anda para frente, retrocede e forma percepções que não conseguem ser explicadas pelo tempo cronológico. As criações artísticas afro-diaspóricas inspiradas por este tempo, fizeram parte dos dias de encontro do HackLab, etapa de imersão e residência artística do Lab Quilombola. Dentro de cada um dos quilombos nos encontramos com as mestras, promovemos que os artistas vindo de outros territórios tivessem suas histórias entrecruzadas com as delas, conectando semelhanças e diferenças também sobre a origem e a narrativa de vida de cada pessoa presente.
Cris Tigra, Negalê Jones, Guilherme Vieira e Felipe Nunes foram os artistas que vivenciaram essas experiências e que ainda seguem no processo de criação de obras ancestro-futuristas que estão sendo elaboradas com as colheitas feitas em cada um dos quilombos. Quilombo da Fazenda e Caçandoca em Ubatuba e Quilombo do Cafundó em Salto de Pirapora foram os territórios em que as residências artísticas aconteceram.
“Uma característica muito especial que dá intensidade e força ao LabQuilombola é justamente a realização da residência-hacklab nos Quilombos, territórios que, desde sua gênese, têm como característica a resistência, luta, salvaguarda e difusão de uma consciência afrodiaspórica”, pontua André Anastácio, coordenador geral do projeto. Segundo ele, esse contexto, potencializou o encontro geracional entre mestras quilombolas, artistas contemporâneos e da cultura digital, que juntos mobilizaram afetos, compartilharam diversos saberes e desenvolveram, neste laboratório ancestral a céu aberto, experimentos-caminhos-obras com perspectivas afrocentradas de futuro.
O projeto é uma iniciativa da Maranha, realização do Pro-Mac – Programa Municipal de Apoio a Projetos Culturais de São Paulo, com patrocínio da META e Falconi
A casa de farinha e tessituras com as mulheres da taboa
O primeiro território que acolheu o HackLab foi o Quilombo da Fazenda, na cidade de Ubatuba, litoral Norte de São Paulo. Natalina, Cida e Carmem foram as mestras que compartilharam sobre as memórias e os fazeres da arte de tecer a taboa e também sobre o lugar. Somaram-se a esse encontro o grupo de jovens que tocam jongo na comunidade, proporcionando experimentos que envolveram: tramas de taboa, fitas de led endereçável, sensores de som, tambores e projeção. Mestras e artistas desenvolveram em conjunto uma trama entre a lógica dos padrões tecidos em fibra de taboa e a lógica dos padrões de desenhos visuais feitos com código e leds.
“Todo processo de troca foi transformador, vou guardar comigo a memória das mestras que compartilham seus saberes da maneira mais sincera e empática possível, sabendo que o importante do conhecimento é transmiti-lo e não guardá-lo. Essa primeira parte da residência representou uma materialização de ideias e ideais que já vinham germinando em mim, de que não existe sabedoria do futuro que não é arraigada no presente e passado e que os tempos sempre se cruzam”, compartilha Guilherme Vieira, artista selecionado para a etapa do quilombo da Fazenda.
Quilombo da Caçandoca
Nos dias vividos no Quilombo da Caçandoca, o hacklab contou com a participação de dois artistas: Chris Tigra e Negalê Jones. Lá, estivemos pertinho, dentro da casa, do ateliê e das memórias da dona Neide, uma mestra que conhece muito sobre seu território, é artesã de diversos tipos de matéria-prima e também conhecedora das ervas medicinais e das plantas que ela cultiva.
A Caçandoca está localizada em Ubatuba, no extremo sul da cidade e pertinho do mar e, trata-se de um território composto por muitas histórias que permeiam seu reconhecimento, titulação e a permanência na luta pela terra e pelo modo de vida tradicional. A comunidade é o primeiro quilombo do Brasil que foi reconhecido em áreas marítimas e vive do turismo, do artesanato, da pesca e também da articulação comunitária pela luta organizada que busca garantias de direitos. Por estar localizado beira mar, esse território atravessa uma série de desafios impostos pela especulação imobiliária e pelo turismo de massa que chega por lá e, ainda assim, mestras e mestras do lugar guardam as tradições culturais e promovem turismo de base comunitária como forma de manter o protagonismo das ações na comunidade.
“A Caçandoca expandiu meus pontos de vista e agora é uma influência constante em meu trabalho. A luz da lua refletida no mar daquele lugar me deu novos horizontes. A Caçandoca me deu permissão para lidar com a terra em minhas criações. A mestra me ensinou a trançar e colocou uma flor em minha espada de palha. Ela também me ensinou muito sobre plantas de cura. A mestra me mostrou a profundidade das brincadeiras infantis quilombolas e a sutileza da transmissão do conhecimento oral. Parte de meu trabalho assume um lado de grandes proporções depois de ter convivido com dona Neide”, compartilha Negalê Jones, artista que inspirou a criação do projeto Lab Quilombola e que foi selecionado junto com os demais para vivenciar esses percursos.
Junto com Negalê, Chris Tigra e dona Neide formaram um time durante a imersão que mergulhou nas experiências de cada um e nas propostas artísticas trazidas que se encaixaram com a natureza e as histórias do lugar. “Memória é coisa viva, se move com a gente, o lab ativou um movimento expandido que foi e continua sendo o encontro entre mestra Neide, Negalê Jones e eu, frutíferos por conta de tanta coisa indizível e muito bem influenciados pela junta no território onde rio cruza com mar”, conta Tigra sobre o processo vivenciado na Caçandoca.
De acordo com a artista, essas vivências todas quando entram em nós depois elas ecoam projetando o futuro e as construções que virão. “O beat “eu amo a Caçandoca” puxado pelas crianças já é hit, as experimentações sonoras e visuais são reflexos dessa vida e estão em curso, muito agradeço aos encontros todos que esse projeto proporcionou e avante, finaliza.
Nas trocas com dona Neide, ela ensinou para todos os presentes uma cançao de ninar que sua “nhãnhã” (avó) cantava para ela e seus irmãos quando criança. Depois de muitos anos a mestra descobriu que se tratava de uma cantiga africana e que os dizeres: “Ama Tonô Toti Toti Amerô Ama Tonô”, são uma mensagem de amor e carinho. Negalê, ao retornar do quilombo, tatuou no braço essas palavras. “Pude sentir uma coisa especial que muito já tinha ouvido falar, já tinha lido sobre o assunto e até me deparado com desenhos ilustrativos mas nunca tinha visto e na Caçandoca eu vi e tudo isso vai estar presente nas minhas obras. Ao retornar de lá, ministrei minha oficina de arte e tecnologia para oito turmas que ao encostarem nas plantas, os participantes ouviram dona Neide cantar”, compartilha com carinho Negalê Jones.
“Vou viver, vou viver no Cafundó”
“Começo, meio e começo” como diz Nego Bispo. Quando mergulhamos em uma fonte tão profunda e sofisticada de saberes ancestrais é impossível voltar ao mesmo. A afirmação e a luta, a resistência e a herança espiritual, a terra e o poder do fogo. O amor e a celebração dos que vieram antes. A chama que não se apaga. A magia e o respeito aos fundamentos do solo sagrado. Difícil descrever sentimentos que ainda estão germinando. Só sei agradecer”, conta Felipe Nunes, artista que participou do hacklab no Quilombo do Cafundó.
Localizado no interior de São Paulo e fundado em 1888, o Quilombo do Cafundó guarda em suas tradições orais a sabedoria de uma língua africana que se constituiu no Brasil chamada de cupópia. Lá também se dança jongo com o grupo Turi Vimba e as roças agroecológicas são referências para muita gente que ouve falar desse território. Seus festejos celebram a religiosidade afro-católica e a organização comunitária se fortalece a cada dia recebendo visitas, promovendo encontros e levando suas histórias para outros cantos do Brasil.
Regina Pereira é a mestra, erveira e liderança política e artesã que esteve conosco na nossa residência artística. Ela trabalha com estamparia botânica feita com as plantas tradicionais da comunidade por meio de uma técnica artesanal que desenvolveu. Além disso, é erveira e conhecedora das plantas medicinais do quilombo. Nos dias passados junto com o povo do Cafundó, além das trocas com a mestra Regina, conhecemos também os griôs Marcos e Jovenil, guardadores da língua da cupópia, um saber que se consolidou naquele território através do tempo e que a comunidade luta para manter.
“Voltando de Salto de Pirapora, ficava lembrando do olhar do Seu Marcos e da alegria do Seu Juvenil tocando atabaque. O aconchego do abraço da Dona Regina. Do cuidado e das histórias da Mãe Cíntia, e seu templo sagrado construído por várias mãos do zero. O Júnior emendando uma cantiga atrás da outra na beira da fogueira. A Ariane com seu jeito doce dizendo com maior carinho do mundo “bem vindo à salto de pirapora”, e realmente me senti em casa com o passar dos dias”, finaliza Nunes.