Bob Dylan é um dos artistas mais influentes da história da música. A afirmação superlativa dificilmente é contestada por historiadores da música e entusiastas da cultura pop. Se você não gosta, provavelmente seu ídolo gosta. Parte do trajeto que transformou o icônico artista numa lenda é contada em “Um Completo Desconhecido” (título original: “A Complete Unknown”), mais recente cinebiografia focada no enigmático ícone do folk e rock.
Dirigido por James Mangold (“Johnny & June” e “Ford vs. Ferrari”) e estrelado por Timothée Chalamet (“Duna), o longa concentra-se no período crucial da transição de Dylan do folk acústico para o rock eletrificado, culminando no lendário festival de Newport em 1965, onde nem a resistência do público local foi capaz de parar o ímpeto pela mudança de rumo musical do poeta.
O filme pincela um pouco da adolescência de Dylan, em Duluth, Minnesota, quando algumas de suas primeiras influências surgem, como o rock de Little Richard e depois blues e folk. Se apresentando em bares com sobrenome artístico em homenagem ao poeta Dylan Thomas, o compositor busca seu espaço no mercado indo até Nova York de encontro a um de seus ídolos, o cantor folk Woody Guthrie, que estava à beira da morte num hospital. Com essas experiências, Dylan ganha fama nos pequenos palcos da cidade, e um elogio do crítico Robert Shelton na resenha para o “New York Times” levaria Dylan a ter contrato com a gravadora Columbia.

Desde o início, “Um Completo Desconhecido” foge da caricatura chapa branca, não hesitando em pintar seu protagonista como egocêntrico, nem sempre simpático a todos ao seu redor, e um amante pouquíssimo fiel, o que para além de parecer frivolidade ou fofoca, definiria o rumo de suas canções.
O relacionamento conturbado com Joan Baez, um sucesso do folk, é retratado como pilar de uma mudança de rumo na carreira do cantor, que conseguiu alcançar um público bem maior surfando nos caminhos abertos por ela.
As composições de natureza poética rara de Dylan, mostrando uma visão afiada do mundo, sem deixar de beber na tradição musical, chegaram num momento em que o mundo precisava de uma tradução sonora para os acontecimentos do mundo. O filme mostra de forma satisfatória a criação de canções emblemáticas da época como “Like a Rolling Stone”, “Blowin’ In The Wind” e “The Times They Are A-Changin”, que acabaram se tornando hinos do rock e também trilha sonora para movimentos dos direitos civis.
A atuação de Timothée Chalamet é magnética, capturando a essência do jovem Dylan com sua mistura de arrogância, genialidade e constante mutação. Sua imersão no papel é notável, tanto na voz quanto nos trejeitos. Talvez o incômodo para o fã hardcore do cantor seja o fato de Chalamet cantar melhor que o original. Sério, teve gente reclamando disso. A indicação ao Oscar de Melhor Ator foi merecida e se ganhasse seria ainda mais!
James Mangold foi um maestro neste filme. O diretor conseguiu recriar a atmosfera dos anos 60 de modo impecável, apoiado numa cenografia maravilhosa e num trabalho de fotografia e edição competentes.

Para os fãs de música, obviamente a trilha será um dos pontos altos do filme, mas mesmo quem não conhece a obra de Bob Dylan poderá captar nas interpretações convincentes de Chalamet a força da poesia do compositor.
Ao contrário do malfadado filme do Queen, em “Um Completo Desconhecido”, o roteiro explora as contradições de sua estrela, tanto nas relações pessoais como em sua lida com a fama e o público. Ter um protagonista multifacetado, cheio de erros, mas simpático, conduz o público a entender parte de suas ações, ainda que com contrariedade.
Talvez tenha faltado um pouco de mergulho nas motivações do personagem em relação a algumas ações, como a insistência em cantar para seu ídolo moribundo e quais interações posteriores o levaram a fazer dessa tradição algo tão importante.
O filme também não traz nada inédito aos fãs. Tudo que é familiar está ali, sem mais aprofundamentos além do que já foi contado em biografias.
Todos ao redor de Timothée Chalamet fazem muito bem seus papéis, tendo bons momentos, como é o caso de Monica Barbaro como Joan Baez e Edward Norton como o mentor Pete Seeger. O carisma e charme de Baez foi captado com proeza por Barbaro enquanto Norton entrega bem a figura de um homem conciliador e de visão para o talento das novas gerações do folk.
“Um Completo Desconhecido” é uma cinebiografia sólida e envolvente sobre um dos períodos mais importantes da carreira de Bob Dylan e da música. Timothée Chalamet se destaca e faz jus ao período de cinco anos em que se preparou para o personagem. Embora possa não agradar a todos os públicos por causa do ritmo lento, o filme é uma ótima opção para quem quer conhecer mais sobre a vida e a obra de um dos maiores ícones da música mundial.
Uma cinebiografia diferente veio antes
Para quem deseja uma cinebiografia menos convencional, há o mais experimental “I’m Not There” (“Não Estou Lá”), de 2017. Dirigido por Todd Haynes, o filme opta por uma abordagem fragmentada e surrealista, tornando a experiência um pouco mais desafiadora.
A narrativa de “Não Estou Lá”, de forma não linear e altamente simbólica, usa seis personagens que representam Dylan (interpretados por Christian Bale, Cate Blanchett, Marcus Carl Franklin, Richard Gere, Heath Ledger e Ben Whishaw) refletindo diferentes períodos e aspectos da vida e obra do cantor. A estrutura até combina mais com as diversas facetas de Dylan e também foge bastante de fincar qualquer cena como verdade, oferecendo ao espectador a pulga atrás da orelha para lidar.
Ao usar múltiplos atores para representar Dylan, Haynes sabia que poderia errar bastante e perder o foco da narrativa, mas no geral o resultado é muito bom, sobretudo quando Cate Blanchett aparece para representar o Dylan na fase elétrica (mesmo período fotografado em “Um Completo Desconhecido”). O mesmo não acontece com de Richard Gere, sendo a atuação menos magnética dos seis.
A trilha sonora é formada por canções regravadas por artistas contemporâneos e algumas performances originais, todas servindo como complemento da narrativa.
Mais desafiador, mas menos competente no resultado final em comparação ao filme mais recente focado em Dylan, “Não Estou Lá” é para fãs mais hard de música, mas pode confundir o público casual que prefere narrativas lineares.