Baseado no clássico Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, Grande Sertão chegou aos cinemas de todo o país na última quinta-feira (6). Dirigido por Guel Arraes (O Auto da Compadecida) e estrelada por Caio Blat (Mar do Sertão) e Luisa Arraes (Justiça), o filme transporta o cenário sertanejo permeado por violência de jagunços para um cenário distópico dentro de uma favela localizada num tempo indeterminado.
Dentro do recorte de facções e forças policiais autoritárias, o professor Riobaldo (Caio Blat) tenta sobreviver no Sertão, local dominado pelo bando de Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi). Após presenciar a morte violenta de uma de suas alunas na porta a escola, Riobaldo conhece Otacília (Mariana Nunes), mãe da menina, e reencontra Diadorim (Luisa Arraes), amigo de infância que marcou sua vida e que agora faz parte do bando de Joca como um de seus mais valorosos soldados. O reencontro leva Riobaldo a abandonar a posição pacifista e tomar um lado que desafia suas antigas convicções de mundo.
A encruzilhada de Riobaldo é a encruzilhada de um Brasil fraturado entre o racional e a emoção, entre tentar ser iluminista e seguir suas paixões diante de um mundo que parece desprezar o raciocínio de conciliação.
Arraes opta por se distanciar do texto naturalista tomado pelas versões anteriores do livro e abraça a prosódia característica da obra original. Neste aspecto, os atores têm chance de brilhar e o fazem bem. O psicopata assassino Hermógenes de Eduardo Sterblitch surge ameaçador, como um Coringa brasileiro que não precisa de motivos, somente a sede de sangue e morte. Caio Blat e Luisa Arraes, (o primeiro já esteve na versão teatral de Grande Sertão), devoram seus personagens sem dificuldade, mas quem toma as telas é Luís Miranda, intérprete do comandante do exército, Zé Bebelo. O ator apresenta interpretação superlativa, expondo uma personalidade ambígua, ameaçadora e engraçada num equilíbrio notável.
Guel Arraes gosta de narrativas sertanejas e conseguiu resultados satisfatórios adaptando com louvor Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida (2000) e dirigindo o mega sucesso Lisbela e o Prisioneiro (2003). O diretor domina todos os elementos de tela e consegue tirar o máximo dos atores e do texto de Guimarães, mas a escolha pela linguagem teatral pode não ser a opção mais agradável ao público. Em entrevista dada ao Pretessências, tantos os atores quanto o cineasta apontam a necessidade de não subestimar o público e isso certamente é o correto, mas o nervosismo transmitido pelas situações na tela, talvez, ganhasse contornos mais acessíveis com um texto que se aproximasse mais do cenário que acolhe aqueles personagens.
A narração em off de Riobaldo, condutor da história, de fato, é uma delícia para ouvidos afeitos à poesia e a visceralidade do teatro, mas não se pode deixar de pensar em como seria o mesmo texto com gíria hip hop ou funkeira, mais condizente com a cosntrução daquele mundo. Em algumas ocasiões, os diálogos soam artificiais, pouco combinando com o que estamos vendo em tela. Nem sempre o que funciona muito bem no teatro combina com a linguagem cinematográfica. No entanto, pensando no campo do que “se é” e não do que “seria”, Grande Sertão é satisfatório em seu resultado como adaptação do clássico modernista de Rosa.
A história de amor de Diadorim e Riobaldo tem carisma e a química entre Blat e Arraes é inegável, assim como as inserções inspiradas de Rodrigo Lombardi, coberto por uma competente maquiagem. A caracterização dos personagens, inclusive, é um ótimo exemplo do que o cinema nacional consegue quando conta com ótimos profissionais. Figurino e maquiagem/cabelo, setores aos comandos Cao Albuquerque, Diana Leste e Rosemary Paiva são um show à parte. Esses aspectos aliados à fotografia do diretor Gustavo Hadba, fazem do longa um espetáculo técnico dos melhores feitos recentemente no cinema nacional.
As cenas de ação são sangrentas, sobretudo envolvendo tiroteios e Luisa Arraes mostra boa fisicalidade nas cenas de luta, embora, como de costume no nosso cinema, ainda falte mais impacto neste tipo de sequência.
Grande Sertão é um steampunk brasileiro corajoso, ousado e bonito de se ver. Ao revisitar uma obra dos anos 1950, Arraes relembra que pouco mudou e que nossas favelas já são uma plena distopia sem fim. No entanto, a obra de Guimarães Rosa segue sem uma adaptação que faça jus completo à sua grandiosidade, o que é mais mérito do livro em si do que dos adaptadores que precisam recriar em poucas horas, mais de 700 páginas de um livro áspero e difícil de ler mesmo para leitores experientes.