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Blues, sangue e resistência: Em “Pecadores”, Ryan Coogler e Michael B Jordan nos lembram que eles sempre vão querer sugar o que é nosso

Blues, sangue e resistência: Em "Pecadores", Ryan Coogler e Michael B Jordan nos lembram que eles sempre vão querer sugar o que é nosso

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Robert Leroy Johnson foi um lendário e misterioso guitarrista de blues que influenciou de Muddy Waters a B.B. King e tudo mais que veio depois. O poder de sua guitarra e seu canto sobre a dor, a agonia e a vida de afro-americanos do começo dos anos 1920 e 1930 são considerados sobrenaturais. E digo “literalmente sobrenaturais”. Segundo o mito contado e recontado através das décadas, Johnson vendeu sua alma ao diabo na encruzilhada das rodovias 61 e 49 em Clarksdale, Mississippi. A partir dali, nada soou tão poderoso e único quanto seu violão e seu doloroso blues.

Pois logo nos créditos iniciais de “Pecadores” (Sinners), o novo filme de Ryan Coogler, vemos uma ilustração que remete a Robert Johnson. E para além da evocação do personagem musical, entramos numa atmosfera inebriante em todas as esferas do sensorial, num filme que se abre ao público de forma lasciva, magnética e irresistível, em que em pouquíssimos momentos o público adivinha para onde está seguindo, talvez para uma encruzilhada fazer pacto com o diabo ou para uma Igreja Batista dos anos 1930 pedindo clemência via o louvor preto de uma família de ex-escravizados.

Ambientado no Mississippi dos anos 1930, “Pecadores” segue os irmãos gêmeos Elijah “Fumaça” e Elias “Fuligem” (ambos interpretados por Michael B. Jordan) em seu retorno a uma comunidade negra do Mississippi, um dos estados mais racistas dos EUA. Veteranos da Primeira Guerra Mundial e ex-gângsteres de Chicago, os dois anseiam fundar rapidamente um clube de blues na cidade, onde os pretos poderão confraternizar livremente e também manter o dinheiro em suas mãos.

Blues, sangue e resistência: Em "Pecadores", Ryan Coogler e Michael B Jordan nos lembram que eles sempre vão querer sugar o que é nosso

É provável que isso tenha sido dito em dezenas de críticas em filmes que contam com a presença de Michael B. Jordan, mas a presença do ator é cativante e aqui, o adjetivo funciona em dose dupla.

Embora imponentes e decididos, Fumaça e Fuligem não voltam para a cidade apenas para se vangloriar das aventuras fora da lei que viveram fora da comunidade. Ambos precisam lidar com pontas soltas e ressentimentos que a fuga anterior não apagou. Mais rígido e sério, Fumaça encontra ternura no reencontro com sua ex-esposa Annie (Wunmi Mosaku). A dor entre os dois surge de uma perda comum e lacerante. Praticante de rituais de magia ancestral africana, ela oferece conforto na espiritualidade, mas também no amor e na química corporal, química essa que parece se derramar na tela graças ao talento dos dois atores.

Faísca, de personalidade fanfarrona, parece ser vazio da paixão que o irmão possui, evitando reencontrar-se com Mary (Hailee Steinfeld), filha de sua mãe de criação e antiga paixão que abandonou sem muitas justificativas. Há calor aqui, há paixão e culpa.

Ryan Coogler jamais se apressa na apresentação de seus protagonistas. De forma esperta, ele instala a pulga atrás da orelha dando ao público uma primeira cena instigante: Sammie (Miles Caton) entra ofegante, ensanguentado e ferido na igreja onde seu pai é pastor. O violão de corpo prateado está em pedaços, mas parece unido em um só com seu dono. O pastor convoca Sammie a abandonar o violão e se confessar a Deus. Corta. Somos transportados para a chegada dos primos gêmeos de Sammie, 24 horas antes.

Coogler usa a jornada de Fumaça e Fuligem para nos levar a um passeio por cada personagem da trama. Ele faz com que a gente se importe com o drama daquela gente. E apesar da sinopse genérica que o marketing do filme divulgou, todos os dramas aqui são engajantes.

Blues, sangue e resistência: Em "Pecadores", Ryan Coogler e Michael B Jordan nos lembram que eles sempre vão querer sugar o que é nosso

Também há um senso de humor recorrente e sagaz, característica somente de diretores que abrem mão da autoindulgência em favor de sua obra. Da família chinesa dona de uma mercearia ao lavrador, há uma carência de fé e oportunidades em outras possibilidades que fica latente. Diante disso, não é tão difícil para o charme dos Gêmeos convencer cada membro influente ou talentoso daquele lugar de que um clube de blues seria um ponto espetacular de confraternização e liberdade. Liberdade essa que existe oficialmente há alguns anos, mas que é só uma fabulação norte-americana, ainda mais em sua parte sul.

Quando a antiga serraria é comprada de um simpatizante da Klu Klux Klan, a tensão se instala para nunca mais esvair até o final do longa. Cientes de que o lugar foi usado para torturar negros, os irmãos deixam o vendedor de sobreaviso do que virá se o grupo supremacista branco aparecer. Talvez para uma pessoa branca, passe batido, mas sempre é recompensador para o público preto ver pretos se impondo de forma irascível e contundente, mesmo que na ficção.

A construção do Clube de Blues funciona como um pequeno e fugaz sonho de liberdade. Nem que seja por algumas horas, o mundo vai parecer melhor, menos duro, menos violento, menos racista, mais idílico.

No canto de Sammie, na inauguração do lugar, Coogler brinca de fazer referências e faz uma costura histórica entre os ritmos africanos, o rock, o hip hop e o blues. Se Robert Johnson fez pacto com o diabo para alcançar o melhor blues, Sammie parece convocar as forças sobrenaturais para um embate pelo seu talento e pela liberdade conquistada naquela noite. A câmera do diretor passeia como um pássaro atento por cada canto, enquanto canções de diferentes tempos parecem ter sido criadas uma para a outra no fio invisível das décadas.

A reviravolta, melhor aproveitada se você não viu o trailer, acontece após o momento de epifania bluezeira. O diretor nos lembra que não importa quanta liberdade se conquista e em quais momentos, ela sempre é passageira diante de um racismo sistêmico, endêmico, estrutural e virtualmente imbatível. O terror e a música batem do lado de fora, querem entrar, querem participar da festa à qual não foram convidados. Eles jamais permitiriam que pretos guardassem tanto talento para si sem que brancos pudessem usufruir e sugar.

O terror sempre está à espreita

Autumn Durald Arkapaw constrói uma cinematografia de nível de excelência, enquanto as camadas sonoras ajudam na imersão completa. Queremos sobreviver junto com aquela comunidade. A trilha sonora, composta por Ludwig Göransson, é personagem onipresente e salutar na narrativa.

Michael B. Jordan brilha, e se nada de espetacular acontecer na memória da Academia, uma indicação ao Oscar não seria surpresa. A performance em dose dupla do ator impressiona tanto nas cenas físicas quanto na construção do drama de seus personagens, feito acompanhado com competência por seus colegas de cena, incluindo Hailee Steinfeld, Wunmi Mosaku e Delroy Lindo.

A combinação de elementos de terror, musical e drama histórico para desnudar um Estados Unidos que jamais se livra de seu marco fundador, o racismo, forma um caldo coeso, embora alguns simbolismos possam passar batido por quem se mantém distante de qualquer pauta racial. O racismo sempre foi e sempre será um predador que só se combate em comunidade. Se para uma organização vampiresca como a KKK, a saída é esconder a covardia em grupos, para o preto é organizar o ódio e a coragem na comunhão. Nenhuma opressão histórica sobrevive ao blues entoado do coração de milhares.

“Pecadores” é uma obra que coopta nossa alma e acerta ao subverter os clichês dos gêneros que abraça. Funciona como drama histórico, como musical e sobretudo como terror, ao fazer da experiência cinematográfica um dedo em riste para o horror que realmente existe fora das telonas. Ryan Coogler e Michael B. Jordan formam uma parceria instigante. Cada um na sua valência oferece um filme que serve como entretenimento de primeira grandeza, mas também um terror/musical que explora temas relevantes e, infelizmente, ainda muito atuais.

O horror está sempre por perto.

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Última atualização em: 19 de abril de 2025 às 1:25

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