Ao final da exibição de “Ainda Estou Aqui”, a sensação é que há um nó na garganta compartilhado por todos os presentes na sala. Há um clima de tensão permanente na projeção que não precisa de música de suspense ou manipulações baratas do diretor para atingir em cheio o público. O filme flutua sob uma sutileza poética rara em filmes que retratam a dor da perda familiar sob um escopo de símbolo do que era uma nação comandada por um governo de terror.
No início da década de 1970, o Brasil a ditadura militar brasileira segue recrudescendo e, no Rio de Janeiro, a família do ex-deputado Rubens Paiva, composta por sua esposa, Eunice, os cinco filhos do casal, vive à beira da praia recebendo amigos em um clima de acolhimento constante, com portas abertas como símbolo de um convite aos bem intencionados. Um dia, Rubens Paiva é sequestrado por militares à paisana e desaparece, jogando toda a família numa neblina de horror e incerteza.
Para que tudo que vem a seguir funcionasse, era preciso que a meia inicial de “Ainda Estou Aqui” conseguisse estabelecer um vínculo afetivo do público com a família Paiva. E a direção consegue isso através de um adjetivo que permeia todo o filme: sutileza. Numa caracterização muito parecida com o Rubens Paiva real, Selton Mello encarna de forma incrivelmente carismática o pai de família que se afastou da política institucional, mas que continua a ajudar os perseguidos do regime entregando cartas aos familiares. Em paralelo é um marido e pai bonachão que está sempre rindo e fazendo a família rir, quase como se os protegesse da realidade além da rua, além da praia que fica em frente a casa.
Os trabalhos de Valentina Herszage como Vera Paiva (jovem), Luiza Kosovski como Eliana (jovem) e de Guilherme Silveira como Marcelo (criança) como os filhos do casal, são muito autênticos e ajudam na imersão dentro do núcleo daquela família tão ligada em música, festas, amigos e ironicamente quase alienada pela proteção do pai.
A fotografia solar do início do longa desaparece assim que os capatazes dos militares invadem a casa dos Paiva. A casa deixa imediatamente de parecer acolhedora e fica parecendo com a antessala de um purgatório. A partir do momento que o personagem de Mello deixa a casa, o substrato de alegria se esvai, e entra de vez o talento da aclamada Fernanda Torres. Sua angústia e desespero são uma jornada solitária uma vez que ela, assim como antes o marido fazia, tenta proteger as crianças da realidade política brasileira sob o regime oriundo do Golpe de 1964.
Torres conduz sua Eunice Paiva no limiar de um desespero contido que se transforma ao pouco em desesperança. As sequências de tortura psicológica durante sua prisão e de uma de suas filhas é milimetricamente filmada para captar as sutis expressões de emoções confusas se contendo e isso pode parecer uma oportunidade perdida de desnudar uma interpretação mais visceral e barulhenta da atriz, mas a escolha do caminho é acertadamente o contrário. Da prisão do marido, passando pelo seu próprio encarceramento e rumando para as investigações cheias de pistas falsas e manipuladas pela Estado militarizado, Fernanda Torres confere à Eunice uma dor lacerante traduzidas em um rosto engessado entre a incredulidade, o ódio e a tristeza. A presença de Torres é o maior impacto do filme. Todas as fases de sua dor compõem um poema obscuro sobre perda e resistência.A postura de força impenetrável também é a fraqueza de Eunice, que se isola por amor aos filhos e à memória do marido.
O título do filme se justifica pela presença definidora da ausência de quem se foi. “Ainda Estou Aqui” lembra que toda anistia aos militares é um erro e que como diria Renato Russo “o terror continua, só mudou de cheiro e de uniforme”. Não podemos esquecer e nem perdoar.