A inclusão da diversidade nas organizações tem ocupado as manchetes e os discursos de maneira inquietante. Em um cenário global tensionado pela pressão política nos Estados Unidos e pelo redirecionamento de investimentos privados para agendas de conservadorismo social, surge uma pergunta inevitável: as mudanças em políticas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) são motivadas por conveniência política, uma consciência capitalista em busca de lucro ou um reconhecimento honesto das falhas passadas?
Essa questão não é nova, mas continua a ressoar com força. Nos Estados Unidos, o debate sobre diversidade corporativa ganhou destaque nos anos 1990, impulsionado pelas políticas afirmativas dos anos 1960. No Brasil, a Constituição de 1988, aliada à influência de multinacionais e à pressão dos movimentos sociais, lançou as bases para discussões sobre diversidade no ambiente de trabalho. No entanto, o que frequentemente se observa são iniciativas reduzidas a metas numéricas ou campanhas superficiais – um “teatro da diversidade”, no qual a busca por aprovação pública supera o compromisso genuíno com a equidade.
Historicamente, tanto as visões liberais quanto as marxistas sobre o trabalho ignoraram as múltiplas opressões baseadas em gênero, raça e sexualidade. A figura do trabalhador foi construída sob a normatividade masculina, excluindo outras identidades. Foi apenas com os movimentos feministas, negros e LGBTQIA+ dos anos 1960 e 1970 que essa visão começou a ser desafiada. Essas lutas reivindicaram um olhar mais complexo sobre desigualdades estruturais no trabalho e na sociedade. Ainda assim, mesmo com avanços teóricos e práticos, muitas organizações permanecem presas a modelos que tratam a diversidade como uma estratégia de marketing ou uma obrigação legal. A inclusão real exige mais do que isso: requer uma transformação cultural profunda.
Marco de Resistência, o Dia Nacional da Visibilidade Trans – celebrado em 29 de janeiro –, emerge como um símbolo poderoso. Criada em 2004 com a campanha “Travesti e Respeito”, do Ministério da Saúde, essa data trouxe à tona questões que antes eram invisibilizadas: o direito à dignidade e à humanidade de pessoas trans e travestis. Janeiro tornou-se um mês de luta e orgulho, representando a resistência de uma comunidade que enfrenta barreiras sociais e econômicas há décadas.
No Brasil e no mundo, pessoas trans ainda enfrentam estigmas profundos nos espaços formais. Para muitas empresas, contratar uma pessoa trans é visto como um ato ousado diante do status quo. Esses estigmas não apenas questionam a capacidade profissional dessas pessoas, mas também sua legitimidade para ocupar cargos dentro da estrutura organizacional.
O papel das organizações | As organizações têm o poder – e a responsabilidade – de atuar como agentes de transformação social. Mais do que atender às demandas externas ou cumprir cotas impostas por legislação, é necessário um compromisso genuíno com a justiça social. Políticas como a adoção do nome social, suporte durante transições de gênero e benefícios inclusivos não são apenas ferramentas administrativas; são declarações claras de valores organizacionais. Além disso, iniciativas como projetos para resgatar escolarização perdida ou oferecer formação profissional podem criar oportunidades reais para pessoas trans. No entanto, essas práticas precisam ser acompanhadas por esforços contínuos para construir ambientes onde a dignidade seja inegociável e o respeito não precise ser reivindicado.
Na minha experiência gerenciando projetos para a empregabilidade de pessoas trans, percebi que o investimento só resulta efetivamente quando há uma análise profunda da vulnerabilidade do grupo selecionado para a formação. Muitas vezes, cursos voltados para o desenvolvimento de software selecionam pessoas sem afinidade com o tema ou sem acesso aos equipamentos necessários para acompanhar as aulas — isso não deve ser um impeditivo, mas sim uma métrica de impacto a ser considerada. O desejo de superar condições vulneráveis leva essas pessoas a se inscreverem nesses programas; no entanto, as dificuldades no aprendizado e a falta de infraestrutura podem resultar em desengajamento.
Ter acesso à formação não é suficiente, sem investimentos executivos, como acesso a equipamentos e suporte contínuo, essas iniciativas podem perpetuar um ciclo de frustração. Garantir infraestrutura e mentoria é essencial para transformar potenciais projetos em realizações concretas; criar uma comunidade que reforce o aprendizado teórico e apresente o mercado de trabalho a essas pessoas. Aspectos práticos como elaboração de currículos, captação e inscrição em vagas de emprego, apresentação em entrevistas e até mesmo cuidados pessoais são fundamentais para preparar os indivíduos para o mercado.
A verdadeira inclusão vai além do cumprimento de metas ou da construção de reputações corporativas; ela começa com o reconhecimento da humanidade em sua pluralidade. Empresas que abraçam essa visão transcendem seu papel econômico para se tornarem forças motoras na criação de oportunidades. Elas ajudam a reescrever histórias individuais enquanto moldam uma sociedade mais justa.
Neste mês da visibilidade trans, a pergunta que devemos nos fazer não é apenas “o que estamos fazendo pela inclusão?”, mas “o que mais podemos fazer para transformar o sonho de equidade em uma realidade cotidiana?” A resposta deve ser uma ação coletiva.
Sobre a autora
A inovadora social Judá Nunes é licenciada em Teatro pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Especialista em Educação para Inclusão da Diversidade, reconhecida como LinkedIn Top Voices Orgulho, tem atuado como educadora, gestora de projetos, consultora, escritora e palestrante; a especialista se destaca como mentora de um novo tempo, oferecendo insights sobre a dinâmica da diversidade no século XXI. Desde 2016, atua com educação transformativa e desenvolve uma metodologia para a formação de executivos com foco em Impacto social.