Baco Exu do Blues é, sem dúvida, um dos nomes mais importantes surgidos no rap brasileiro nos últimos anos. Nem os detratores podem negar que seus dois primeiros discos (“ESÚ” e “Bluesman”) são obras-primas do gênero que já apontavam o artista explorando sonoridades além do boom bap: a exemplos do R&B, soul, giras do candomblé e MPB.
Já no debute, Baco emplaca referências à cultura pop para dissertar sobre suas vivências de homem preto baiano, é o caso das ótimas “Abre Caminho” e “Capitães de Areia”. Ainda houve espaço para um hit fura bolha, a quente “Te Amo Disgraça”, dos já clássicos versos “Bebendo vinho / E quebrando as taça / Fudendo por toda casa / Se divido o maço, eu te amo, disgraça“.
Sim, “ESÚ” foi um marco dentro do rap nacional e sem exagero, até na música brasileira, pois apresentava um artista que viria a se consolidar como um dos mais requisitados para shows e feats fora da agromúsica dominante no país.
Quando veio 2018, Baco mostrou a que níveis estava sua ambição musical ao lançar um álbum visual que venceu Beyoncé e Jay-Z com prêmio em Cannes. No caso, o vídeoclipe de “Bluesman”, que ganhou ao lado do icônico “This is America”, de Childish Gambino. Foi a primeira vez que um artista brasileiro conquistou a categoria.
“Bluesman” é um disco coeso, tão impactante quanto o anterior em suas temáticas, mergulhando ainda mais fundo em um Baco furioso (Eles querem um preto com arma pra cima / Num clipe na favela gritando: ‘cocaína’ / Querem que nossa pele seja a pele do crime / Que Pantera Negra só seja um filme / Eu sou a porra do Mississipi em chamas), mas ainda assim romântico (Ouvindo Exalta na quebrada/ Gritando ‘eu me apaixonei pela pessoa errada’), resumindo, todo afeto. Ali, o cantor se expunha ainda mais como um nervo exposto em faixas como “Queima Minha Pele” (Amor, você é como o sol/ Ilumina o meu dia/ Mas queima minha pele) e a já clássica e irônica “Me Desculpa Jay-Z” (Me desculpa, Jay-Z, queria ser você/ Minha vida tá chata, quero enriquecer).
Ao abrir o disco com samples de Mannish Boy, de Muddy Waters, o rapper baiano lança uma ponte entre o passado e o futuro da música negra através da sonoridade de dois homens pretos separados por época e fronteira.
Até este momento, Baco Exu do Blues parecia ser uma unanimidade. Crítica musical e público pareciam ter achado mais um “salvador da música brasileira”. Não podemos esquecer que Baco surge num período em que nomes celebrados da cena do rap também faziam barulho como Djonga, Froid, BK´, enquanto Emicida, Rashid, Projota e Criolo seguiam acumulando uma base fiel de fãs com lançamentos consistentes. Sem contar o famigerado “ano lírico”, em que parte do público na internet celebra como grande ano do rap nacional dos últimos anos, justamente quando Baco aparece com a polêmica “Sulicídio”, onde atira “sua metralhadora cheia de mágoas” aos rappers da região sudeste e ajuda a mover toda uma cena independente que não tinha medo de fazer DISS.
Em meio à canções de romance e putaria (sim, ela sempre esteve lá), a fúria de Baco parece ter sido aplacada por algo mais perigoso: a depressão. Ele já dava indícios em canções como “Imortais e Fatais” e “En Tu Mira”, mas se abriu ao público e à imprensa, falando sobre o processo de enfrentamento da doença. Então, tínhamos ali, um homem preto falando sobre saúde mental abertamente, o que por si só já era um símbolo poderoso e um exemplo, mas como sempre, o artista dobrou a aposta e foi à forra com seu álbum mais confessional.
“QVVJFA? -Quantas Vezes Você Já Foi Amado?” é uma crônica da vivência resumida de muitos homens pretos brasileiros. Primeiro trabalho inteiro lançado por seu selo próprio, agora o público do cantor precisava refletir as dores de uma pessoa preta falando sobre objetificação, amor, dinheiro, vitórias e derrotas de forma dolorosamente honesta.
A pergunta introdutória soa de forma rascante, dando a deixa da melancolia intimista que permeia o trabalho. Claro, o sexo está presente e já era possível ouvir aqui e ali pela internet, burburinhos de que Baco “só sabia falar disso”. Uma leitura rasa de uma trinca de discos que é uma coleção de pérolas nem sempre compreendidas por quem passa à margem de alguns debates comuns envolvendo raça e gênero, e não é que isso seja um atestado de inacessibilidade da música do rapper, pelo contrário, ele nunca teve medo de soar pop, mesmo quando raivoso, mas o Brasil, historicamente, guarda uma ignorância sobre as condições emocionais de homens negros e nem sempre a exposição é apreendida prontamente.
Com o lançamento de “FETICHE”, EP cheio de relatos sensuais e celebrações de conquistas sexuais, pulularam nas redes sociais debates sobre a suposta decadência lírica de Baco Exu do Blues. Estaria ele se repetindo e ficando cansativo?
Bom, musicalmente, “FETICHE” passa longe de ser o trabalho mais atrativo do cantor e poeticamente também não faz muito esforço, mas não deixa de ser um exercício totalmente válido de um artista que ofereceu uma jornada completa de autodescoberta de afetos em três álbuns igualmente consistentes em que entregou como poucos uma narrativa repleta de contornos íntimos que se abrem para uma tradução de todo um universo de homens pretos que pouco falavam sobre seus sentimentos.
Baco se entrega à fetichização do corpo negro que tanto a comunidade negra combate ou apenas está explorando a liberdade de ser alguém desejado após refletir e superar a rejeição, também comum aos corpos pretos? Ora, talvez, o próprio cantor tenha respondido a dúvida quando declara “Sinto tanta raiva que amar parece errado”. Ódio mina, cansa e mata.
Como artista, ele deve estar ciente do que tem se falado a respeito do trabalho dele, e se lançou o EP é porque está satisfeito com o material.
No visual que acompanha “FETICHE”, Baco Exu do Blues vive o bacanal fora da quarentena com uma mulher que encontra em uma festa. O prazer sem limites acontece na imaginação daquela mulher. Há quem vá entender que é sobre hipersexualização, há quem entenda que é um reforço do conceito.
Se distanciando do rap e mergulhando no naturalmente sensual R&B, Baco parece se sentir bem, na verdade, melhor do que nunca. “Todos sabem eu sou o mais foda/ Não preciso me amostrar/ Outro patamar/ Não quero ouvir o que você tem a dizer/ Sinceramente sua opinião não importa/ Eu tenho a vida dos sonhos, nego” declara em “tanta inveja”.
Outro enorme nome da cena também fez um movimento para cantar outros temas além do ódio nascido da opressão. No entanto, Djonga não recebeu tantas críticas quando lançou “Inocente Demotape”. Será que a imagem de símbolo sexual de Baco ajudou a fazer com que as pessoas entendessem sua nova fase como exercício de autofetichização? E é possível alguém se auto-objetificar conscientemente?
O ódio organizado e bem focado pode mudar o mundo, mas o excesso dele adoece e o público precisa entender que muitos pretos que vencem através da música urbana não estão traindo seu público ou “tentando agradar os brancos”, como li nas redes, mas buscando outras alternativas e formas de contar as variações de sua própria história.
Criolo continua soando contundente como sempre, mas tem experimentado outros ritmos, parcerias e maneiras de trilhar seu caminho. Os Racionais não se obrigam a gravar disco a cada dois anos com a fúria a qual sempre estamos esperando.
Esses homens negros estão aprendendo a canalizar mais sentimentos que apenas raiva e ainda que isso signifique inconsistência de qualidade nos trabalhos ou não agradar o público que cativou, é uma forma de continuar sobrevivendo e pluralizando a imagem do homem preto além da raiva e violência, características associadas a nós desde que o primeiro europeu pisou em África.
Versos como ”eu controlo o vibrador da calcinha dela enquanto ela dirige” pode não ser o melhor momento poético de Baco (não pela temática, mas pela construção), mas ainda assim é a expressão de um artista que faz de sua música uma confissão extremamente pessoal, o que é sempre um refresco quando o mainstream está tomado de produções pasteurizadas que rendem dinheiro aos representantes do agronejo sem oferecer em troca relevância artística.
“Eu sou um dos poucos que não esconde o que sente/ Eu não aceito sua prisão, minha loucura me entende”. Ele já tinha dado o recado.